LONDRES - Sete meses antes da eclosão da Segunda Guerra Mundial, o chapeleiro Martin Kaczynski, sua mulher, Edith, e os dois filhos pequenos conseguiram os papéis necessários para emigrar para o Reino Unido. A família de judeus de Berlim fugia da perseguição do partido nazista de Adolf Hitler e da iminência daquele que seria o conflito mais sangrento da História. Tornaram-se refugiados.
Mas, diante do pânico de uma invasão alemã, foram levados, com milhares de outros, para os chamados campos de internamento, criados em solo britânico, de onde foram liberados dez meses depois. Pode-se dizer que tiveram um final feliz. Já Sophie Happ, irmã de Edith, não teve a mesma sorte. Ficou para trás com o marido. Enquanto esperava os documentos, mandou os dois filhos. A menina, Vera, de 14 anos, morreu de meningite pouco depois de desembarcar no novo país. Wolfgang, o menino, chegou são e salvo.
Durante algum tempo, Sophie viveu o luto e tentou agarrar-se à esperança de um futuro melhor nas correspondências que trocava com a irmã. “Feliz com boas notícias. Que toda sorte e saúde continuem. Martin melhor. Sophie trabalha muito. Wolfgang não esquecer túmulo de Vera em 12.12. Amor para todos”. A mensagem de 31 de outubro de 1942 foi a última recebida por Edith. A irmã e o marido foram deportados para Auschwitz, onde morreram no ano seguinte.
As cartas da família foram apenas algumas das 24 milhões de correspondências trocadas entre judeus refugiados e parentes e amigos com a ajuda da Cruz Vermelha, que se encarregava de enviar os documentos, que não podiam ter mais de 25 palavras e precisavam respeitar um conjunto de regras, aos destinatários.
29 mil internados
Muitas delas, porém, jamais chegaram a quem de direito, por inúmeras razões. Duas cartas enviadas pelo refugiado Rudolph Bamberger à mãe Olga, que estava em Nuremberg, na Alemanha, percorreram o mundo três vezes, durante quase dois anos, e jamais alcançaram o destino. Foram devolvidas ao remetente. Mas, antes, foram parar em campos na Inglaterra e na Austrália, por onde Rudolph passou. Chegavam sempre depois da sua partida. E ainda fizeram uma escala equivocada pelo Canadá, onde o envelope da correspondência confirma que ele nunca esteve. “Não internado no Canadá”, atesta o carimbo vermelho no canto superior esquerdo.
Pouco mais de cem envelopes como esses e alguns cartões postais foram parar nas mãos de William Kaczynski, filho de Martin e Edith, que cresceu e viveu em Londres. Durante 20 anos, ele reuniu sobretudo envelopes de documentos enviados de e para os campos de internamento, dentro e fora do Reino Unido. Com ajuda da historiadora Charmian Brinson, do Imperial College, especialista em estudos germânicos, montou o livro “Fleeing from the Führer”, ou “Envelopes: testemunhas postais da história”, na versão lançada hoje no Brasil.
— Cerca de 25 mil homens e quatro mil mulheres passaram pelos campos de internamento britânicos. A maioria deles na Ilha de Man, onde esteve a família de William — conta Charmian ao GLOBO.
A professora acabou amiga de William. Foi ela quem reconstituiu a história por trás dos envelopes que ele reuniu sofregamente. Tania Kaczynski, uma das três filhas de William a quem o colecionador dedica o livro, conta que o pai sempre gostou de colecionar objetos.
— Meu pai juntou documentos que provam o que aconteceu. Cada um desses envelopes conta tantas histórias. São a prova física da História. Importante sobretudo para aqueles que negam o Holocausto — disse Tania.
O livro chega ao Brasil em projeto de Ezequiel Rosnam, amigo de William. Mas a empreitada não acaba aí. Ele quer ir além: exposições e um novo livro que tenta organizar para contar a trajetória dos emigrantes brasileiros. Não apenas dos judeus que foram parar no país. Quer sensibilizar as pessoas para a história de tantos refugiados hoje no mundo.
— Se o refugiado for bem recebido, ele se integra na sociedade local. É gente maravilhosa. Minha ideia é falar de todos. Não só dos judeus.