Artigos / Marcelo Horn

28/11/2022 - 09:56

COPA DO MUNDO NO QATAR: DIREITOS HUMANOS E A HIPOCRISIA INTERNACIONAL NAS ARÁBIAS

Os alemães e em menor grau os ingleses andam questionando se é moral torcer na Copa do Qatar. Nos dois países surgem questionamentos sobre o torneio global da FIFA estar sendo realizado sob os auspícios de uma monarquia absolutista e teocrática que é acusada de graves violações dos Direitos Humanos.

As críticas mais estridentes vêm da Bundesliga, a confederação nacional de futebol da Alemanha, desde a preparação da equipe que viria disputar a copa de nações com forte ativismo dos jogadores vestindo camisetas de treino com mensagem de defesa dos Direitos Humanos e o goleiro Manuel Neuer, capitão da seleção, fazendo a iniciativa de usar uma braçadeira com coração e cores LBTQIA+ chamada ONE LOVE que foi vetada e proibida pela FIFA para não causar constrangimentos ao regime Qatariano.
  1. A CONTEXTUALIZAÇÃO ECONÔMICA/GEOPOLÍTICA DO QATAR NO SISTEMA INTERNACIONAL:
Banhado pelo Golfo Pérsico e com 900 trilhões de metros cúbicos de reservas de gás natural em seu subsolo, o Qatar é um emirado absolutista de poder hereditário, controlado pela Casa de Thiani desde o século XIX. O pequeno país está situado na Península Arábica e a título de curiosidade, possui a metade da área do estado brasileiro de Sergipe.

Devido as suas abundantes reservas de petróleo, o país tem ostentado influência econômica e política cada vez mais exacerbada no sistema internacional.

A receita da exploração do gás financia megaprojetos que reverberam a pujança econômica do país, como é o caso da Copa do Mundo de 2022, assim como a participação em grandes empreendimentos europeus e o apoio a movimentos rebeldes no mundo árabe.

O país é essencialmente um deserto de 11,5 mil quilômetros quadrados de território e população de cerca de 2,7 milhões de pessoas, a maioria delas estrangeiros residentes. O Estado Qatariano ainda apresenta a maior renda per capita do mundo.

Durante boa parte dos séculos XVIII e XIX, o Qatar esteve sob controle da Inglaterra.

O país tornou-se independente em 1971, se tornando o “novo coração do Oriente Médio”, conforme aponta Mehran Kamrava, diretor do Centro para Estudos Regionais e Internacionais da Universidade de Georgetown.

Conforme alude Kamrava, “o país emergiu como um centro gravitacional do comércio, transporte, política e diplomacia da região.

As reservas de petróleo e gás foram descobertas em 1939, todavia, sua exploração foi postergada em decorrência da Segunda Guerra mundial.

A partir dos anos 1950, esta atividade engendrou a modernização da infraestrutura do Qatar, sucedendo o país a se tornar a posteriori em um investidor global.

Segundo Kamrava “com os grandes recursos que advém dessas atividades, o Qatar fez nos últimos anos investimentos muito agressivos no exterior, o que incluem o The Shard, o maior prédio da Europa, participações nas montadoras Porsche e Volkswagen, no banco Barclays e no time de futebol francês Paris Saint – Germain (PSG).

O PSG é propriedade da Qatar Sport Investment (QSI), uma subsidiária da Qatar Investment Authority, um fundo de investimento soberano cujo CEO é o Emir do Qatar Tamim bin Hamad Al Thani. Alguns críticos explanam que o PSG é um time estatal apoiado pela riqueza do petróleo do Qatar.

Após a compra do clube francês pelo fundo de investimento do país, o clube se tornou a “nova coqueluche” do cenário futebolístico internacional com ida de jogadores galácticos para o time da capital francesa. O PSG destinou bilhões de euros em contratações de jogadores midiáticos como foi o caso de Lionel Messi e do brasileiro Neymar.

Diante disso, o Qatar utiliza o PSG como uma ferramenta de soft power, para mitigar sua imagem no cenário internacional.

Relembrando o conceito de soft power, Joseph Nye, expoente autor da academia de Relações Internacionais, que estuda as formas de poder no sistema internacional, desenvolveu esse conceito em 1990, em contraposição ao hard power (poder duro).

Para Nye, o soft power significa “uma capacidade persuasiva de poder, ou seja, pela capacidade de um Estado auferir algo através de um efeito de atração e não por coerção ou pagamento.

Em síntese, o soft power diz respeito a habilidade que o Estado possui de exercer seu poder ou por influência, ou por meio das ideias.

Ele é balizado na persuasão, diferentemente do hard power que é embasado na coerção. Existem algumas maneiras na qual o soft power pode ser exercido, como por meio da cultura, dos valores políticos, da política externa, do cinema ou por meio do esporte, caso irrefutável do PSG.

O contexto geopolítico do Qatar no Oriente Médio necessita ser sublinhado por este escrito. O país frequentemente é acusado pelos vizinhos da região como um Estado- Nação que abala a estabilidade e a segurança do Oriente Médio por apoiar grupos extremistas como o autointitulado Estado Islâmico e Al- Qaeda. Em 2017, Arábia, Saudita, Bahrein e Emirados Árabes romperam relações com Doha, obrigaram os cidadãos Qatarianos a deixarem seus territórios e vetaram que seus próprios cidadãos visitassem ou residissem no país.

O rompimento das relações diplomáticas também foi seguido por Egito, Iêmen e Líbia. No caso particular do Egito, Doha já consentiu que ajudou o grupo Irmandade Mulçumana, adversário ferrenho do governo militar egípcio.

As tensões na região vêm se intensificando ao longo dos últimos anos, demonstrando com frequência que o Qatar tem estado fora de simbiose com seus vizinhos. De maneira geral, a instabilidade que paira entre o Qatar e os países adjacentes são: a relação do Qatar com grupos islâmicos, e a função do Irã nesse cenário geopolítico, adversário regional da Arábia Saudita. Valendo da premissa “o inimigo do meu inimigo é meu amigo”, os iranianos de maioria muçulmana xiita, são os principais opoentes regionais da Arábia Saudita, país de maioria sunita. É de referir que o Qatar e o Irã compartilham um dos maiores campos de gás marítimo do mundo. Enfatizando a importância da cooperação regional entre os dois países, o presidente do Irã Ebrahim Raisi, versou que Doha e Teerã devem sedimentar as relações entre eles e que essa relação ensejaria paz e segurança para o Oriente Médio.

Importante reverberar nesta contextualização geopolítica sobre o Qatar é o papel que a Al Jazeera aufere para o Estado Qatariano. Lançada em 1996, a rede de TV Al Jazeera fez o Qatar ficar conhecido no mundo todo, se tornando pedra elementar na estratégia do país para expandir sua projeção e influência para além de suas pujanças de petróleo e gás. De acordo com Kamrava, “a Al Jazeera mudou o jogo das relações entre o Estado, a sociedade, e o equilíbrio do Oriente Médio’. Financiada pelo governo, a emissora não pratica em sua cobertura interna, os mesmos padrões reservados aos vizinhos. A empresa, entretanto, transformou-se em um contencioso de diversos governos árabes, onde a cobertura da Al Jazeera foi largamente favorável aos protestos da Primavera Árabe, em 2011, protestos esses que buscavam por democracia, e maior liberdade de expressão em alguns países do Oriente Médio. Devido a essas e a outras atitudes que antecedem a Primavera Árabe, o sinal da emissora e o seu próprio site foram bloqueados em diversos países da região, dentre eles, na Arábia Saudita.
  1. QATAR 2022: A COPA DO MUNDO DAS VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS:
Em 2 de dezembro de 2010, superando todos os prognósticos, o Qatar surpreendeu o mundo ao ganhar o direito de sediar a Copa do Mundo de 2022. O país derrotou propostas dos Estados Unidos, Japão e Coréia do Sul e Austrália, se tornando o primeiro país do Oriente Médio a receber o maior evento de futebol do planeta. Desde o momento de sua escolha, o Qatar já vem sendo alvo de críticas internacionais, a começar pela acusação de ter pago US$ 3,7 milhões a funcionários a FIFA em subornos para garantir seu apoio. O então presidente da FIFA na época, Joseph Blatter, incentivou a candidatura na época. Porém, desde então, Blatter frequentemente expõem que a FIFA pode ter tomado a decisão equivocada. Blatter está, atualmente, sendo julgado em seu país, a Suíça por fraude, peculato e corrupção, acusações essa, que segundo Blatter são infundadas.

A partir do século XXI, a realização de megaeventos esportivos, como é especificamente o caso da Copa do Mundo, converteu-se em fonte de sérios problemas concernentes a problemas relacionados à proteção dos Direitos Humanos, ocasionando um aumento na cobertura midiática sobre as questões sociais do torneio e uma crescente pressão de grupos ativistas de Direitos Humanos sobre a FIFA e os países sede. A realização de uma Copa do Mundo, enseja uma estupenda oportunidade para o Estado – sede fomentar sua infraestrutura, avolumar sua economia e atrair investimentos internacionais, visando o seu crescimento à partir do prestígio do megaevento. No entanto, a violação de pautas relacionadas aos Direitos Humanos é deletéria à imagem do país que receberá os holofotes globais. Sediar um evento de tal magnitude tornou-se não apenas uma oportunidade para o Estado-sede, mas também uma escolha que envolve responsabilidades e pressões internacionais.

A população do território que sedia a Copa do Mundo é indubitavelmente afetada pelo evento, auferindo os benefícios da infraestrutura, do crescimento econômico, da chegada de turistas ao país etc. Todavia, o Estado escolhido para sediar o evento sofre com problemas inerentes a tudo isso, principalmente os relacionados à proteção de seus Direitos Humanos. A Copa do Mundo é um espetáculo que torna todos os acontecimentos no país-sede, proeminência global, convertendo-se em fonte de manifestação política dos povos locais, grupos ativistas e da mídia internacional, que podem utilizar o palco do evento para exibir situações de violações aos Direitos Humanos, que já existem no país e que são reforçadas ou causadas em maior escala devido ao torneio. Este foi o caso do Qatar.

As condições degradantes nos canteiros de obras são problemas assíduos que ocorrem nos países que se predispõem a receber tais eventos. O sistema trabalhista do Qatar, e as alegações envolvendo os abusos e as graves violações aos Direitos Humanos dos imigrantes na preparação da Copa do Mundo reverberou motivo de preocupação da Sociedade Internacional. O Qatar apresentou números assustadores, com mais de mil mortes registradas, porém sem informações das causas especificas, devido à falta de investigação de autoridades locais. A Anistia Internacional apontou que desde 2010 houve uma “litania de abusos”, quando a FIFA concedeu ao Qatar a sede da Copa do Mundo de 2022, sem pedir melhorias em suas práticas trabalhistas.

Conforme explana Agnes Callamard, secretário- geral da Anistia Internacional, “dado o histórico de abusos dos Direitos Humanos no país, a FIFA sabia ou deveria ter ciência dos riscos latentes para os trabalhadores quando outorgou o torneio ao Qatar”. Os trabalhadores imigrantes do Qatar estão sob tutela jurídica do sistema de trabalho “Kafala”, no qual o Estado designa a responsabilidade e fiscalização dos trabalhadores para companhias ou sujeitos privados (patrocinadores) que possuem o poder legal sobre os empregados, e decidem quando eles podem trocar de emprego, sair do atual ou até sair do país. Caso o trabalhador saia do emprego sem permissão, pode ter sua permissão de residência cancelada pelo empregador e ficará em condição de ilegalidade no país, podendo até mesmo ser deportado e preso por um determinado período.

Kafala trata-se de uma exigência inspirada na Lei mulçumana – a Sharia, legalizado pelas leis trabalhistas do Qatar na qual deixa os trabalhadores imigrantes em condições vulneráveis e, submissos aos empregadores e entidades privadas. As condições de trabalho são degradantes, com salários baixos, jornadas de trabalho longas e exaustivas com pouco tempo de descanso para os trabalhadores. Estes colaboradores trabalharam sob altas temperaturas, apresentando danos físicos e psicológicos, além de condições de moradia insalubres, sem qualquer observância de direitos fundamentais básicos de dignidade humana.

As Nações Unidas identificaram diversas violações cometidas pelo Qatar dentre elas: violações ao direito a vida; a liberdade; a segurança; ao devido processo legal; liberdade de ir e vir; liberdade de associação e o direito a condições favoráveis e justas de trabalho. Devido a pressões internacionais, como a da Organização Internacional do Trabalho (OIT), o Qatar promoveu a flexibilização do sistema kafala com reformas legislativas, autorizando os trabalhadores imigrantes a trocarem de emprego sem necessidade de autorização dos patrocinadores.

Além das violações de Direitos Humanos de trabalhadores imigrantes, mulheres e a população LGBTQIA+ também possuem seus direitos cerceados no Qatar. Relações com pessoas do mesmo sexo são proibidas e podem resultar em encarceramento por parte das autoridades Qatarianas. As mulheres necessitam de autorização de seus tutores do sexo masculino para desempenhar direitos como se casar, viajar para o exterior e obter alguns cuidados de saúde reprodutiva.

A FIFA possui evidente importância na Sociedade Internacional, e como entidade reguladora máxima do futebol mundial e proprietária da Copa do Mundo, possui a capacidade de influenciar os Estados e intervir adequadamente em cernes jurídicas e políticas destas nações. A FIFA é capaz de causar impactos importantes no Sistema Internacional, na qual podem ser positivos ou não. A definição de países que ostentam históricos negativos em matéria de direitos humanos apontam que a entidade sempre priorizou a razão econômica da Copa do Mundo e, consequentemente, seus lucros exorbitantes.

O processo para escolha de sediar a Copa do Mundo envolve um longo processo. Primeiramente, as federações interessadas em sediar o evento necessitam apresentar sua candidatura, englobando um documento que abrange o planejamento prévio feito com o país corroborando o apoio do governo, estados e municípios. O “Bidding book” das federações locais deve incluir um amplo material sobre o Estado, manifestando sua vontade em sediar o evento. A etapa da definição do país sede, no primeiro momento, é política e engloba a participação de inúmeros oficiais da esfera pública dos Estados, sendo este processo considerado oneroso e prolongado.

A seleção da sede, além de envolver cernes políticas, abarca também questões econômicas e, nos últimos anos, houve uma tendencia da FIFA de selecionar sedes que ostentassem propostas com maiores investimentos e maior condescendência para exigências da Organização. A seleção de países com democracias mais voláteis no qual o governo pode engendrar suas decisões e aQatar as condições da FIFA com maior facilidade, como correu na Rússia em 2018 e agora no Qatar, em 2022, solidificam a tendencia da Organização em selecionar a sede com base em interesses políticos e econômicos.

A FIFA pode utilizar sua posição de reguladora máxima do futebol para aplicar punições disciplinares nas associações de futebol pela inobservância de diretivas de Direitos Humanos e empregar o poder da interferência jurídica inerente as leis gerais dos megaeventos para abarcar normas para regular o modus operandi do país -sede de acordo com suas práticas e diretrizes de Direitos Humanos . Para a FIFA, se torna benevolente utilizar um dos maiores eventos esportivos como é a copa do mundo para propiciar uma imagem mais eminente perante os sujeitos e atores internacionais. Devido a isso, a partir da realização do torneio em 2026, os processos de nova escolha, com base no “bidding book”, poderão ser vistos na preparação e realização do evento, que se harmoniza, paulatinamente , ao padrão de megaeventos realizados no Século XXI, sob baluarte das normas de Direitos Humanos, reconhecidas internacionalmente como United Nations Guided Principles on Business and Human Rights (UNGPs) na qual se consiste em um guia para a adequação de empresas e organizações privadas que instituem impacto internacional nos territórios nacionais às condutas e práticas de garantia e proteção dos Direitos Humanos no objetivo de sua atuação.

Desde o processo de escolha para a Copa do Mundo de 2026, na qual será nos Estados Unidos, México e Canadá, passou a existir mais transparência na escolha dos países sedes, e a FIFA incorporou como critérios para escolha, o aspecto humanitário e social do candidato. Ao se postular como país-sede, a nação ratifica o “hosting agreement” em que consente com uma série de demandas estabelecidas pela FIFA.

O escrito é uma ressalva de que a entidade poderá atuar com liberdade que necessita para organizar o evento, sem maiores preocupações legais e serve como embasamento do país-sede de que haverá essa facilidade. O “hosting agreement” não tem a natureza jurídica de um tratado internacional lavrado entre Estados e Organizações Internacionais, considerando a natureza jurídica da FIFA como ONGI, na verdade ele funciona como um acordo de adesão entre o governo nacional de um país e uma entidade de direito privado, dessa forma, é questionada a legitimidade que o país-sede teria de cumprir suas demandas, considerando a soberania do Estado. Por isso, para atribuir formalidade jurídica às normas criadas pela FIFA para organizar o megaevento, o país sede estabelece o “hosting agreement” junto a novas demandas e requerimentos da organização, e cria uma lei oficial, vinculando juridicamente o Estado.
  1. Fortes críticas nos estádios da Bundesliga:
Nos estádios alemães, a opinião parece ser unânime: rejeitamos a Copa do Mundo do Qatar, anunciaram muitos torcedores em todo o país nas últimas semanas em faixas e cartazes. As mortes entre os trabalhadores estrangeiros e a legislação homofóbica no Qatar são criticadas publicamente. Com razão.

Mas para muitos críticos o Qatar simboliza muito mais: o caminho perigoso que o futebol moderno tomou. Xeiques e "sportwashing" [prática de usar esportes para melhorar reputações desgastadas], investidores desonestos, corrupção e o aniquilamento da alma do jogo − o Qatar é um símbolo de tudo isso. Tudo isso pode ser rejeitado, posso entender.

Mas, simplesmente ignorar o futebol, como se o maior evento esportivo do mundo não estivesse acontecendo? Antes da Copa do Mundo de 2018, na Rússia, também houve barulho na mídia, mas não houve pedidos de boicote. A força aérea russa lançou bombas sobre a Síria e os trabalhadores convidados norte-coreanos foram sistematicamente explorados na construção de estádios. "Os escravos de São Petersburgo", dizia uma manchete.

Um limite já não havia sido ultrapassado nessa época? Um boicote à TV pode realmente surtir efeito? Cada bar, cada torcedor pode decidir por si mesmo, e baixos índices de audiência também atingem a Fifa. Mas se na Alemanha e eventualmente no norte da Europa os índices forem baixos, outras regiões compensarão isso. A Fifa está há muito tempo no processo de abertura de novos mercados − e isso só pode ser criticado de forma limitada.
  1. Quinze mil trabalhadores morreram por causa da Copa de Futebol no Qatar:
O número 15.021 veio à luz através de um relatório de 2021 da organização de direitos humanos Anistia Internacional. O número 6.500 de um artigo no jornal britânico The Guardian, do início de 2021, também é citado com frequência.

Embora muitas vezes interpretadas desta forma, nenhuma das fontes afirmou que todas essas pessoas morreram em locais de construção de estádios ou no contexto direto da Copa do Mundo. Ambos os números citados incluem estrangeiros em geral que morreram no Qatar.

O número 15.021 do relatório da Anistia Internacional vem das estatísticas oficiais das autoridades do Qatar de 2010 a 2019, segundo as quais 15.799 não Qatarianos morreram no país entre 2011 e 2020.

Portanto, isto inclui não apenas trabalhadores da construção civil pouco qualificados, seguranças e jardineiros, mas também professores, médicos, engenheiros e empresários. Alguns deles vieram de países em desenvolvimento, outros de países emergentes e industrializados. As estatísticas do Qatar não permitem uma classificação precisa.

Guardian chegou a 6.500 porque limitou suas pesquisas a pessoas de Bangladesh, Índia, Nepal, Paquistão e Sri Lanka e solicitaram os números às autoridades dos países de origem. Essas cinco nações representam uma proporção significativa da força de trabalho estrangeira no Qatar, especialmente não qualificada ou pouco qualificada.

4.1- As taxas de mortalidade estão dentro de uma "faixa esperada" segundo o Qatar:

As autoridades do Qatar não contradizem os números acima. Entretanto, em resposta à reportagem do Guardian, o Ministério da Informação do Qatar disse que o número estava "dentro de uma faixa de expectativa para uma população deste tamanho e demografia".

É certo que, de acordo com as estatísticas da Organização Mundial da Saúde (OMS), as taxas de mortalidade são consideravelmente mais elevadas nos países de origem do que entre os trabalhadores migrantes no Qatar. E, de acordo com as estatísticas do emirado, morrem mais Qatarianos num grupo de 100 mil pessoas em um ano do que entre 100 mil trabalhadores estrangeiros. Mas essa comparação tem pouca relevância do ponto de vista epidemiológico, já que a comunidade estrangeira no Qatar não é comparável a toda a população do país.

Por exemplo, a percentagem de crianças pequenas e idosos − os grupos populacionais com maior mortalidade − é desproporcionalmente menor do que no total da população dos países. Além disso, trata-se de pessoas saudáveis, pois, para obter um visto de trabalho para o Qatar, é necessária uma série de certificados sanitários. Entre outras coisas, os candidatos devem apresentar testes negativos para doenças infecciosas como aids, hepatite B e C, sífilis e tuberculose − doenças que são causas de morte estatisticamente relevantes em alguns países de origem.

Ao mesmo tempo, os jornalistas franceses Sébastian Castelier e Quentin Muller ressaltam em seu livro Les Esclaves de l'Homme Pétrole (Os escravos do homem do petróleo, em tradução literal) que nenhum dos números mencionados inclui trabalhadores migrantes que morreram logo após o retorno do Qatar para casa.

No Nepal, por exemplo, houve um aumento significativo de mortes por insuficiência renal entre homens de 20 e 50 anos de idade na última década. Um número impressionante deles havia retornado recentemente do trabalho no Oriente Médio. A atividade árdua no deserto, juntamente com a falta de água potável relatada pelos afetados, pode ser uma explicação para isso.

4.2- Só três morreram trabalhando num canteiro de obras segundo a FIFA:

A Fifa e o Comitê da Copa do Mundo do Qatar sustentam que apenas três pessoas morreram em conexão direta com seus trabalhos nas obras dos estádios. Eles também admitem que 37 outros trabalhadores do Mundial morreram − mas que as mortes não têm nenhuma relação direta com seu trabalho.

Essa contagem pode estar correta. Estão documentados dois acidentes em que trabalhadores caíram de grandes alturas, e outro morreu atropelado por um caminhão-tanque. No entanto, os números são enganosos por duas razões.

Em primeiro lugar, os organizadores da Copa do Mundo ignoram todos os que morreram em outras obras, o que provavelmente não teria acontecido não fosse a Copa. Afinal, o Mundial desencadeou um boom de obras no Qatar,no decorrer do qual foram construídos uma nova rede de metrô, autoestradas, hotéis, uma expansão aeroportuária, a cidade planejada de Lusail, entre outros projetos.

De acordo com a Fifa, em momentos de pico chegaram a ser empregados pouco mais de 30 mil trabalhadores nas obras para a competição.

Em segundo lugar, quem está familiarizado com as condições locais duvida que as 37 mortes não acidentais de trabalhadores da Copa do Mundo não tenham algo a ver com seu trabalho.

De acordo com o relatório anual do Comitê da Copa do Mundo do Qatar Progress of Workers' Welfare 2019 (Progresso do Bem-Estar dos Trabalhadores em 2019), dos nove trabalhadores mortos em estádios naquele ano, três foram alegadamente vítimas de insuficiência cardíaca ou parada respiratória por "causas naturais". Para os epidemiologistas, porém, essas não são causas naturais de morte, certamente não entre pessoas de 18 a 60 anos.

Finalizando, diversos atletas e ex-atletas têm reforçado um coro coletivo contra a realização da Copa no Qatar, algo que fez a FIFA, responsável pelo evento, tomar medidas de extrema relevância para que as próximas sedes tenham esse cuidado e respeito aos direitos Humanos, pela qual em 2017 foi lançada a política de Direitos Humanos da entidade. Como avanço trazido por essa política, há que se destacar a Copa de 2026, com sede em três países – Canadá, México e EUA será a primeira a ter no contrato com os países-sedes clausulas de direitos humanos. Como parte dessas medidas, os Estados sedes do Mundial precisam se comprometer a seguir obrigatoriamente os princípios orientadores da ONU sobre empresas e direitos humanos e desenvolver estratégias nessa proteção.


Quando a FIFA decidiu realizar a Copa do Mundo no Qatar, sabia ou deveria ter o conhecimento que existiam riscos inerente3s para os Direitos Humanos e, que os trabalhadores imigrantes envolvidos em projetos relacionados com o Mundial sofreriam graves abusos para tornar esse projeto factível. A pressão que ocorreu contra a Copa do Qatar acaba por trazer para o ambiente esportivo o debate necessário e contemporâneos indispensável à sociedade, aos estados e aos organismos internacionais. Afinal, o esporte não se afasta do direito e o direito não se afasta da custódia dos Direito Humanos.  
Marcelo Horn

por Marcelo Horn

Advogado e professor universitário (UNEMAT), Especialista em Direito Público, Mestre em Direito, Doutorando em Linguística.
 

 
 
 
 
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  • por Imazap, em 29.11.2022 às 20:28

    Nunca li algo tão lúcido como as palavras ditas no artigo do professor. Mas, "Ah vá!" Hipocrisia só nas Arábias? Doce inocência esperar algo diferente do mundo islâmico, não fosse a Copa no Qatar ninguém saberia nada disso?

 
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