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07/09/2019 - 14:17 | Atualizado em 07/09/2019 - 15:02

Franciscana e defensora dos oprimidos, Shelma foi a 1ª desembargadora do país

Antes que a entrevistada chegue ao local combinado, ainda no saguão do Tribunal de Justiça, uma imensa parede exibe todos os presidentes, e ela, como a única mulher em uma pintura que não lhe destaca qualquer acessório feminino. Filha de imigrantes, Shelma Lombardi Kato foi a primeira juíza a atuar em Mato Grosso - uma das primeiras do Brasil - e a primeira a ocupar o cargo de desembargadora do país. Tem nas veias o sangue desbravador. O pai, japonês, ainda muito jovem abandonou a família em um templo budista em outro continente - e com a mochila nas costas -, conheceu a sua mãe, filha de italianos, no Brasil. Na faculdade, como uma das poucas alunas de direito da USP, ela era uma das melhores da turma. No entanto, antes de passar no vestibular, conta que a aproximação com idiomas diversos dentro de casa e os estudos de latim por conta da religiosidade e escolas católicas que estudou, lhe foram essenciais. Já como magistrada em Mato Grosso, em 1969, comprou um fusquinha, e seguia varando estrada de chão para atuar nas comarcas criminais em regiões distantes, estas como as de Alto Araguaia, e, posteriormente, Rondonópolis e suas redondezas. Em um período, chegou a ser vítima de ameaças, tocaias e muitos tiros na porta de sua casa, o que ela descreveu para a reportagem do Jornal como uma “peneira” pelos infinitos números de bala que recebia. Durante o dia trabalhava e durante a noite ficava olhando para o teto com receio de que um bandido invadisse sua casa para lhe matar, fato que motivou até o Exército oferecer apoio frente a sua residência, mesmo que como uma instituição diferente do Judiciário, por perceber tamanha perseguição. Shelma também contou que quando presidiu o TRE, o ministro José Neri se comoveu com a sua eficiência em aceitar fazer o casdastramento dos eleitores, e lançou, tanto a abertura quanto o fechamento do processo, vindo pessoalmente ao Estado – que foi pioneiro no país a concluir este sistema. Com um delicado broche de Nossa Senhora preso na camisa e posicionado bem no meio de seu peito, hoje, aos 80 anos, ela diz que entre suas maiores inspirações para um legado em defesa das minorias está São Francisco de Assis.

Confira os melhores trechos da entrevista:

Como iniciou sua trajetória na área jurídica? Desde a faculdade, já queria exercer a magistratura?

Sou paulistana e cursei a Faculdade de Direito de São Paulo, que foi a que formou todos os primeiros civis da república. Assim como todos os cursos da USP, Direito era muito concorrido. Eram 1,5 mil candidatos para 100 vagas. Na época que entrei era um pouquinho mais rigoroso o vestibular, porque também tinha exame de latim e tínhamos que traduzir alguns clássicos latinos e fazer a analise lógica dos textos. Uma palavra latina comum como mesa ou cadeira é declinável de acordo com a função lógica. Do nome nativo ao “hablativo”, existem seis formas de dizer e com terminações diversas. Nisso, neste exame, você tinha que fazer a análise lógica de acordo com a terminação da palavra no texto. Precisávamos ter uma formação humanística sólida, muito rigorosa, e eu não era filha de ricos, mas tive a sorte de fazer uma boa formação desde a admissão ao ginásio da escola com frades católicos. Na nossa turma de Direito, mulheres era uma aqui e outra lá longe, um gato pingado, porque além de tudo, a sociedade era muito mais machista. Diziam que o direito era feito para advogados, delegados, senadores e, eventualmente, presidentes da República. Não era coisa para mulher.

Como foi cursar Direito em uma das universidades mais tradicionais do país naquela época? Chegou a estagiar em São Paulo?

Quando prestei concurso na minha faculdade, ela já havia formado todos os presidentes da República que haviam comandado o país. Sem falar dos poetas que passaram por lá, como os da fase romântica, como Castro Alves, Álvares de Azevedo e, por isso, era uma faculdade cheia de encantamentos e de história. Trabalhei em empresa inglesa e carreguei muito livro de latim embaixo do braço pra poder contribuir com minhas despesas do curso, pois não é porque você não paga faculdade que você não tem custos. Tive muito incentivo dos meus pais, sem a ajuda deles não teria conseguido. Morei na casa deles e eles nunca me cobraram nada. O que puderam me dar, me deram. Só que eu tinha que comprar e não podia ficar explorando pai e mãe, era crescida. Pra isso trabalhei na maior empresa inglesa de seguros na época aqui no Brasil e também em escritórios de advocacia – e pra quem está começando no direito nestes escritórios de renome, você é mais ou menos como um copeiro de uma festa. Porque o estudante não está sabendo nada e o advogado não vai querer investir tempo ou ensinar você. No Fórum, em São Paulo, são dezenas de varas civis e criminais, a qualquer hora que você chega nele, ele está super lotado. Um advogado de renome não fica no balcão para conferir o último despache. Por isso, eu subia e descia aquelas escadarias várias vezes ao dia, não dava pra ficar esperando o elevador para levar os processos.



A desembargadora aposentada Shelma Lombardi relembra fatos que marcaram sua vida, como o período em que mal dormia, por conta de ameaças

Você veio de origem humilde? Quem eram seus pais e de que forma acredita que eles contribuíram, além do apoio familiar, para sua trajetória?

Eu não era de origem rica, mas também não era miserável. Meu pai era de uma família tradicional budista e poderia ter ficado no Japão, porque teria se dado muito bem com família de origem, que tinha um templo budista. O meu avô era um monge conhecido, e no Japão nem precisa se falar que é um lugar de muita tradição. Aos 18 anos, ele já era universitário e um sonhador. Queria conhecer o mundo e o desbravar. Largou aquele conforto, antes da guerra – pois não queria disso. Queria atravessar os oceanos e não se importava em passar fome. Apesar de não saber falar uma única palavra em português, e não ter nenhum parente aqui, pegou a mochila e chegou ao Brasil. Apesar de no Japão ser forte o costume de casamentos arrumados, ele se casou com minha mãe, filha também de imigrantes, mas  italianos. Até que entre as cartas da família ele recebeu uma com uma foto de uma gueixa, linda como uma japonesa boneca. No papel, a moça dizia que as famílias já estavam acordadas, e pediu para que ele voltasse para marcarem o casamento. Foi quando meu pai respondeu com uma foto do primeiro filho dele, meu irmão mais velho com dois anos, loirinho e de olhos azuis. Nas escritas dele, meu pai disse: "infelizmente não poderei ir ao Japão e mando foto do meu filho, porque tenho compromisso no Brasil".

Quando prestou concurso, você assumiu em que comarcas de Mato Grosso?

Prestei concurso e fui para comarca de Alto Garças, perto do Rio Araguaia, divisa com Goiás. Alto Araguaia não tinha juiz e Barra do Garças tomava uma dimensão extraordinária do antigo leste mato-grossense. Eu respondia sozinha por todas essas comarcas. Dirigia um fusquinha e viaja pelas estradas. Quando podia, levava um oficial de justiça. Era eu quem ia dirigindo, porque o oficial não sabia. Oficial era gente humilde do interior. Na viagem, passávamos pela comarca de Alto Araguaia, Alto Garças e ia até lá em cima onde residia um bispo valente e corajoso, que era Pedro Casaldáliga. Sou fã dele até hoje, pois defendia os pobres, os índios e oprimidos. Enquanto ele fazia revolução, eu fazia a jurisdição daquele povo. Quando promovida para Rondonópolis – diferente destas outras regiões, lá não era tranqüilo, matavam muito.

Foi uma das primeiras juízes mulher do Brasil. Como era exercer sua função naquela época?

Magistratura e mulher? O que é isso? Tinha gente preconceituosa que falava assim: "mulher tem dois bons espaços, um é esquentar a barriga no fogão e, o outro, pra esfriar ela no tanque". Isso era o extremo do machismo somado ao mau-caratismo e ao medo da competição. Não era algo generalizado, mas havia. Quando entrei na magistratura, tinha em Mato Grosso um desembargador que presidiu o Tribunal de Justiça, e tinha muita força moral e de ascendência, fazia valer a força do direito, mas era menos preocupado com outros aspectos mais sofisticados e, por isso, considerado um herói na época por combater o banditismo, e, de certa forma temido. Tinha também o [desembargador aposentado Oscar] Travassos, que não tinha medo de bandido, que saia em Mato Grosso em qualquer tipo de veículo, não havia essa proteção, como ter carro blindado. Fui uma das primeiras mulheres juízas no país e jurisdicionava uma área maior que vários países da Europa reunidos, que era Mato Grosso. O Estado é imenso, e antes da real divisão territorial, era um mundo.


Shelma tem seu retrato na parede dos ex-presidentes do TJ-MT; até hoje, a desembargadora aposentada foi a única mulher a ocupar o posto

Passou por situações de intimidação e ameaças por ser juíza e mulher? Como foi atuar na área criminal naquela época, sem tanta proteção?

A porta da minha casa parecia uma peneira de tanta bala de bandido. Teve uma época que eu já tava virando loba, porque ao invés de dormir, ficava olhando para o telhado vendo se iriam pular. Não chegaram a pular, mas armaram tocaia e fizeram ameaças. Teve uma época que até o Exército se preocupou comigo e recebi a solidariedade deles. Não se pode misturar e nem tem como as instituições uma na outra, mas que eu tive apoio velado do Exército, por iniciativa deles, e sem o TJ saber, eu tive. Na hora que o bandido quer, não é a hora que Exército está na sua porta ou que o coronel está almoçando com você. Ele te pega de surpresa, precisei de muita fé e coragem, o que sempre tive. Com muita consciência limpa também, pois nunca maltratei ninguém e nunca fiz distinção de gente. Era bem capaz de atender um pobre e miserável ou mulher que tinha apanhado e não atender o rico que o prefeito mandou, pois isso aconteceu mais de uma vez. Inverter as prioridades, por isso corria mais riscos. Graças a Deus, passei.

Também é conhecida pela militância no meio jurídico e atuou na fundação da Associação Nacional de Magistradas (ANM), que foi presidente, e coordenou no Brasil, assim como muitos outros, o Projeto da Jurisprudência da Igualdade, de capacitação de magistrados em Direitos Humanos das Mulheres e das Crianças, que envolve cinco países latino-americanos. Como enxerga essa atuação e o que encontrou pelo caminho?

A gente vê que a caminhada dos direitos humanos, e não apenas o das mulheres, mas das minorias raciais, negros, indígenas e dos pobres, é longa. Gostaria de fazer mais. O que encontrei foi muita inveja, ciúme e trairagem. Só que daí vi que sou uma magistrada, mas sou uma mulher. Não convivo e nem tenho pacto com os donos do dinheiro ou os maiores proprietários urbanos ou rurais, não freqüento rodas da alta sociedade e dos que comandam o poder. Tenho um compromisso com a justiça. Mesmo se eu fosse budista, pela minha tradição paterna, eu não seria diferente. Tive uma formação religiosa muito boa, que é a franciscana. Porque todas as formações religiosas têm o seu carisma, e o dos franciscanos, é o amor e a natureza. São Francisco falava com os pássaros e, entre todas as histórias, me encanta a que ele defende o lobo dos fazendeiros, que se reuniram para matar o animal, porque ele comia as ovelhas, mas era da natureza do lobo. O lobo tem fome. São Francisco, com sua misericórdia, sabendo que o lobo só queria comer, amansou o animal. Por isso tem imagens de São Francisco com o lobo nos pés. Neste caminho que percorri, me inspiro muito em São Francisco de Assis.

Foi casada ou constituiu família durante estes anos?  

Não fui casada e optei por isso. Nem se eu quisesse, poderia. Inclusive, pelos riscos. Na minha época eu atendia todo o antigo leste do Estado e ficava na estrada todos os dias. Ter família nestes cargos é correr o risco de ter seus parentes, ao voltar para casa, vítimas de bandidos. Não havia uma estrutura de proteção. Durante o dia eu tinha que trabalhar e durante a noite tinha que ficar olhando para o teto. Isso não era delírio porque estava com medo, mas porque havia ações concretas para isso. Em uma época, o Exército queria saber o que estava acontecendo - e disseram que estavam ao meu lado. Eu dizia que não era nada, que isso era risco normal de juiz. Eu não ia falar nada porque, assim, haveria gente dizendo: "ta vendo, se fosse um homem isso não estaria acontecendo". Diriam que por eu ser mulher, precisava de proteção, fecharia as portas para todas as outras mulheres a seguir. Não escolhi constituir família, porque fiz uma escolha também muito importante, que era ajudar quem precisava de justiça e sem distinção, como homens, mulheres, negros, brancos, indígenas, brasileiros ou imigrantes.


Desembargadora aposentada Shelma Lombardi durante entrevista exclusiva à repórter Mirella Duarte, na sede do TJ-MT, na tarde desta quarta (04)

Além de primeira juíza, foi também a primeira mulher a presidir o TRE e o TJ em Mato Grosso. Tem recordações de momentos históricos importantes desta época?

Tenho algumas. Por exemplo, chegamos a uma nação com mais de 100 milhões de habitantes, e muito caos e roubalheira nas eleições. Por isso, o ministro José Neri da Silva, que presidiu o Supremo e o Tribunal Superior Eleitoral, naquela época, notou que Brasil tinha gente que votava cinco vezes, outras que não tinham votado e apareciam como se tivessem votado. Isso, sem falar dos políticos desonestos que manobravam a massa para o interesse próprio. O ministro convocou, então, todos os presidentes de tribunais regionais do país em ano de eleição e disse que o povo não merecia isso. Falou nesta reunião em Brasília que iria cadastrar todos os eleitores, remover os falecidos e cadastrar os novos eleitores que haviam completado os 18 anos. Quando estávamos no TSE, e ele anunciou isso, foi aquela confusão. Era um desafio, ainda mais em ano político, a primeira eleição democrática após o regime militar, em 1985 [eleições municipais]. Queriam linchar o Neri lá na sala da presidência mesmo. Foi aí que no meio daquela “homarada” eu gritei “ministro, ministro, Mato Grosso quer falar que vai se cadastrar e vai cumprir, isso é preciso e o senhor está certo”, quando os presidentes dos outros Estados e Distrito Federal me ouviram, começaram a abaixar o tom. Fomos os pioneiros neste processo e só passou a votar quem passasse pelo crivo da Justiça Eleitoral.

Qual legado acredita estar deixando para o judiciário mato-grossense e brasileiro?

Não sei se deixo algum legado e não quero ser pretensiosa a ponto de dizer isso. No entanto, acredito que a gente é carregado de preconceitos. Falamos que não, mas somos. Em meu período de atuação já participei de diversos congressos internacionais com outras mulheres inteligentíssimas, presidentes das suas cortes de Justiça Eleitoral. Reconheço, então, que muito além de mim houve mulheres que fizeram uma ascensão extraordinária, mas, mesmo assim, muitas são vitimas de preconceito ou preteridas pelo fato de serem mulheres. No entanto, não falo só das mulheres que passaram ou ainda passam por isso – das que por ousarem a liberdade, sofrem violências de todos os tipos. Falo também dos indígenas, negros, pessoas de nacionalidades e culturas diversas ou qualquer tipo de minoria, que possa vir passar por isso. Todos temos deveres e direitos que precisam ser respeitados, apesar de todas as diferenças. Sou uma apaixonada por culturas e diversidade, o que é padrão é muito chato. Todos precisam de respeito. Para mim, a chaga que mais entrava a segurança, justiça, saúde, os bem individuais e os sociais, residem na questão da corrupção e na falta de compromisso moral.
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