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19/09/2017 - 09:06 | Atualizado em 19/09/2017 - 09:11

Que Vila danada de Bela é essa ?

Brasileiríssima. Injustiçada pela escravatura e a fuga dos brancos poderosos. Bela, sensual e envolvente. Negra. Devota. Fraterna. De coração aberto ao perdão. Autora de uma página histórica quase tricentenária testemunhada pelas águas do rio Guaporé que passa ficando aos seus pés e da Serra Ricardo Franco que a contempla do alto, de onde também Deus e os orixás que acompanharam seus filhos caçulas desde que deixaram a África nos navios negreiros a enxergam com olhos de paternidade. Salve a linda comunidade guardiã da fronteira Oeste brasileira, ô Deus! Salve-a São Benedito! Salve-a o Divino Espírito Santo! Salvem-na as Três Pessoas da Santíssima Trindade. Salve-a Ogum! Salve-a Xangô! Salve-a Iansã! Salve-a Nanã! Salvem-na os demais orixás! Salve-a o espírito da Rainha Teresa de Benguela! Todos nós a saudemos, pois a cidade de Vila Bela da Santíssima Trindade, que foi a primeira capital de Mato Grosso.
 
A América Latina era feudo dos reis de Espanha e Portugal quando em 9 de maio de 1748 a Coroa portuguesa criou a Capitania de Mato Grosso numa área de São Paulo. O nepotismo luso mostrou sua força e o rei Dom João VI nomeou seu primo e capitão-general Dom Antônio Rollim de Moura Tavares para governar o território recém-emancipado.

Mato Grosso era imenso vazio demográfico. Cuiabá tinha 32 anos e a aventura em busca do ouro empurrava a fronteira Oeste pra dentro dos domínios espanhóis quando Rollim de Moura fundou Vila Bela da Santíssima Trindade em 19 de março de 1752 para ser capital do naco de terra que o primão lhe dera pra governar.

Até parece com o agora. Um primo do rei governando num palácio construído por mão de obra escrava numa terra conquistada na esperteza agrária pela fragilidade do Tratado das Tordesilhas, substituído pelo Tratado de Madri, que por falta de GPS tinha a utilidade de cobertor nas ensolaradas tardes de Mato Grosso.

Nos primórdios de Vila Bela havia temor de que a Espanha avançasse sobre o Oeste brasileiro. Agora, o risco é outro: a internacionalização. ONGs do exterior com apoio da Funai insuflam indivíduos ditos chiquitanos a brigarem por demarcação de áreas para essa tal etnia, originária da Bolívia, onde a própria pediu pra deixar de existir tornando-se boliviana por excelência. Quem enfrenta o poder das ONGs é o padre Geraldo José dos Santos, do povoado de Santa Clara do Monte Cristo, que defende a manutenção de bicentenárias fazendas e sítios nas mãos de seus donos. Indiferente aos riscos que representa para o Brasil a criação de nações indígenas bem na linha da fronteira, a classe política se faz de morta quanto a isso e a Federação da Agricultura e Pecuária (Famato) não enfrenta a situação porque teme desafiar o Ministério Público Federal (MPF). O MPF e a Polícia Federal investigam sua cúpula, a começar pelo ex-presidente Rui Prado, no famoso caso das Cartilhas do Senar, que resultou num rombo superior a R$ 9 milhões por meio de um esquema que envolveria uma gráfica de Brasília e outros poderosos sindicalistas, além de Prado, na elaboração de material para o programa Agrinho e programas de qualificação de mão de obra do Senar.

Vila Bela engatinhou pronunciando em português enquanto os vizinhos bolivianos hablavam o mais puro espanhol bem ao seu lado. Falava nas ruas. Na igreja católica as orações que se ouviam eram rezadas fervorosamente em latim pelos padres brancos de costas para os fiéis da mesma cor; amém! Nas senzalas, quase imperceptível para não serem escutados pelos feitores e os capitães do mato, os escravos negros elevavam as mãos calejadas aos céus em cultos afros, balbuciando sua fé em dialetos africanos das aldeias de onde foram capturados; saravá!

Hoje, não há restrição religiosa. Cada um segue o caminho que mais lhe convier. Há sempre um pastor por perto oferecendo milagres para enriquecimento, não sem antes abocanhar o dízimo do coitado. Padres também correm a sacolinha. Nos terreiros aparecem muitas caras que frequentam o pé do altar católico.

No ontem, o poder vassalo se esbaldava. Escravos, independentemente da idade, eram levados ao tronco, torturados, mutilados moral e fisicamente e mortos ao menor gesto em busca da liberdade que não havia fora do Quilombo do Piolho ou Quariterê, protegido pela floresta, e onde liderou a rainha Teresa de Benguela depois do assassinato de seu marido José Piolho, pelas forças coloniais.

Teresa de Benguela e seus súditos foram mortos. A liberdade pra eles acabou em 1791 quando a mão de ferro desceu sobre Quariterê transformando-o num amontoado de cinzas e de corpos negros.

Chorado
Dança do Chorado
Dança do Chorado
 
Na cidade e nas fazendas, mães, tias, irmãs, cunhadas, primas e amigas dos escravos que seriam levados ao suplício descobriram um meio de amenizarem e até mesmo de evitarem a tortura dos seus. Inventaram a Dança do Chorado, que como o nome diz é um bailado permeado com lágrimas. Ao som dos profanos tambores e instrumentos de cordas, dançavam alucinadamente belas e sedutoras para os lacaios da casa-grande e até para os seus ocupantes.

A mulher do Chorado botava vestido de chita colorida com providenciais aberturas e decote para mostrar aos olhos gulosos dos gajos suas coxas grossas, seus seios arrebitados e sua bunda torneada. Uma rosa vermelha ou amarela no cabelo pixaim. Um colar de miçangas feito com cascas e frutos secos do mato. Um perfume extraído de flores. A anca perfeita e tentadora. Os dentes de brancura inigualável. A boca carnuda. Requebrava e em gemidos lascivos despertava desejos. Atiçava ainda mais a tara dos homens que tinham poder para punir ou absolver os escravos a um passo da tortura ou sendo submetidos a ela: gingava com uma garrafa de Canjinjin sobre o cabelo crespo reluzente e dava doses aos extasiados espectadores. O forte teor alcoólico das talagadas com gosto agridoce, corpos bonitos a lhes esfregar… era um ai Jesus!

O que acontecia com uma e outra mulher enquanto as demais dançavam ninguém nunca registrou. Também não há detalhamento do que elas faziam quando cessava a dança e o som dos instrumentos musicais tocados por negros que as acompanhavam. De igual modo nunca se escreveu sobre o comportamento de brancas portuguesas e nascidas em Mato Grosso com os jovens negros. Enquanto seus homens se esbaldavam com as negras, um fuzuê silencioso acontecia entre quatro paredes nas casas-grandes ou em seus quintais. Não havia IBGE para recensear a quantidade de bebês mulatinhos que nasciam de mães brancas e negras. Literalmente era o toma lá dá cá; ora, pois, pois! Davam e se davam bem matrimonialmente as patroas. Puritanas senhoras brancas devotadas à Santa Madre e fiéis quando de pernas fechadas.

O que era dança de dor virou cultura e tradição. O Chorado encanta a todos e mais graça ainda ganha ao som do Conjunto Aurora do Quariterê, formado por mulheres negras com suas vozes roucas e seu ritmo afro-vila-belense saudando o Campo Verde, como a cidade é chamada pelos filhos negros:

(Campo Verde Serenado)
“O campo verde é serenado
O campo verde é Vila Bela
Campo verde é serenado
Campo verde é Vila Bela
Eu vou-me embora pra cidade
Da Santíssima Trindade
Vou-me embora pra cidade
Da Santíssima Trindade
Seu eu soubesse que tu vinha
Fazia o dia maior
Dava o nó na fita verde
Outro no raio do sol
A folha da bananeira
De tão verde amarelou
O beijo da tua boca
De tão doce açucarou”
 
Congo
Congo
 
FESTANÇA – Em julho Vila Bela cobre-se de cor e se deixa inundar pelo som da Festança, que reúne num só período as festas dedicadas ao Glorioso São Benedito, ao Divino Espírito Santo e às Três Pessoas da Santíssima Trindade. No evento se misturam a Dança do Congo, a Dança do Chorado, ladainhas, celebração de missas, procissão, quermesse onde ninguém sabe onde começa o santo nem onde termina o profano. É a mais pura idiossincrasia.

Sem rancor, sem espírito revanchista, em paz e com espírito desarmado, Vila Bela sai às ruas para sua Festança. Moças e vovós se juntam no bailado da sensualidade do Chorado, que também é apresentado em outras ocasiões. Rapazes, homens fortes e anciãos fazem encenações do Congo. O povo canta, dança e é feliz na terra multirracial e abençoada no coração da América do Sul.

Na Festança e fora dela a bebida mais consumida depois da cerveja é o Canjinjin, à base de cachaça, gengibre, mel, canela, ervas aromáticas e outros componentes. A fórmula é guardada a sete chaves pelas mulheres que o fazem, mas a transmitem às suas herdeiras.

A sabedoria popular em Vila Bela diz que Canjinjin foi um jovem, forte e belo príncipe africano filho do rei do Congo. Ao batizarem a bebida com seu nome, as mulheres buscaram uma referência masculina para o produto, que dizem ser afrodisíaco na acepção da palavra.

ADEUS – Uma decisão política levou a capital pra Vila Bela. Outra a retirou de lá. Em 28 de agosto de 1835, quando Dom Pedro II era imperador, o Império transferiu a sede do governo para Cuiabá. Os poderosos do governo e os togados disseram adeus e pegaram a estrada juntamente com o círculo do poder.

Os negros ficaram em Vila Bela na curva da estrada vendo a poeira dos cascos dos cavalos e das carroças baixarem enquanto os senhores sumiam na linha do horizonte.

O poder sempre foi fascinante. Antes os bajuladores e aproveitadores do Estado também usavam ternos. Nenhum tinha boton na lapela, mas ninguém dispensava um quê identificador. Não havia depósito salarial em conta corrente no final do mês, mas a mamação era a mesma de hoje. Vantagem por fora sempre foi prática; por dentro, também. Mordomia nunca faltou, nem falta. A despesa sempre correu por conta do erário. A burocracia do poder não trabalhou no ontem nem o faz no agora, porque sempre teve costas quentes dos políticos, partidos e instituições que chancelam suas nomeações entra governo sai governo. Os crônicos nomeados nunca souberam o que é consciência e não conseguem se ver no espelho.

Os brancos se foram. Levaram consigo o medo generalizado do maculo, a hiperendemia que assolava Vila Bela. Era uma doença bacteriana com disenteria causada pelo carrapato, resultante da falta de higiene e que atingia principalmente os escravos.

Também chamada de mal del culo (mal do cu, em português) essa doença consistia na presença de muco malcheiroso e de ulcerações com relaxamento do esfíncter anal externo. Causou muitas mortes em Vila Bela e seus arredores. Pouca coisa mudou por lá em termos de saneamento. Surgiram os banheiros com água quente, vasos sanitários e pias, chegaram os sabonetes florais, mas o esgoto ou é jogado nas fossas ou corre para o indefeso Guaporé. A prioridade para o dinheiro público é manter o rito do poder, inclusive na Câmara Municipal que é mantida com polpudo duodécimo em detrimento das prioridades do município. Antes, a mão de ferro do poder controlava tudo. Agora, são muitas as mãos que decidem fora dos olhares do povo. Nem sempre os políticos se entendem e isso pode ter sido a causa do assassinato do vereador Milton Guilherme Müller (PTB), em 1998.

Os negros superaram o maculo. Vencerem o isolamento e o abandono. Garantiram a continuidade do hasteamento de certa bandeira verde e amarela com os dizeres “Ordem e Progresso” nas bandas do Guaporé, onde botos-cor-de-rosa e botos-cinza nunca deixam de se apresentar em balés encantadores na água que mais abaixo une os povos brasileiro e boliviano.

No ontem havia o comércio formiguinha entre os dois lados da fronteira. Hoje, também ele existe, mas, independentemente de época, nunca foi controlado pela Receita Federal, que sequer tem Unidade de Atendimento na cidade. Os 15.534 habitantes do município ficam jogados à própria sorte e mesmo assim conseguem progredir. Essa população em parte é formada por ‘boliveiros’ e ‘brasilianos’ – mistura dos dois povos, já que é comum casamento de noivos que em busca do amor atravessam a linha imaginária que bota o Brasil de um lado e a Bolívia do outro.

A renda per capita é de R$ 24.181,10– maior que a mato-grossense. O rebanho bovino e bubalino tem 1.002.985 cabeças em 1.550 propriedades voltadas à pecuária, é o segundo de Mato Grosso e se situa entre os maiores do Brasil. O gado começou a pastar em Vila Bela no final do século XVIII levado por comitivas nas trilhas abertas na mata, num trajeto com mais de 200 quilômetros que começava em Porto Salitre (agora Porto Esperidião), aonde os animais chegavam em embarcações pelo rio Jauru. Hoje a boiada das invernadas do município é transportada em carretas por rodovias pavimentadas para os frigoríficos em Cáceres, Pontes e Lacerda, São José dos Quatro Marcos e Araputanga, num raio de 300 quilômetros dependendo do ponto de embarque. O comércio local é modesto, mas o Produto Interno Bruto (PIB) alcançou R$ 366.054.000 e o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) numa escala de zero a um é de 0,645.

INDIANA – Vila Bela tem extensa fronteira, mas não conta com Delegacia da Polícia Federal, para delírio dos barões do pó. Não tem sequer um posto da Polícia Rodoviária Federal nos 75 quilômetros no ramo da BR-174 que faz sua ligação com Pontes e Lacerda e a malha rodoviária nacional.

Sede de comarca de primeira entrância, Vila Bela tem 15.534 habitantes.

Vila Bela é um dos quatro municípios mato-grossenses na fronteira com a Bolívia, que tem 983 quilômetros de extensão sendo 730 quilômetros por linha imaginária. Os outros são: Cáceres, Porto Esperidião e Comodoro, que faz divisa com Rondônia.

Por mais de um século e meio sua gente marcou a presença brasileira na região. Somente em 1906 a Bolívia tratou de demarcar seus domínios fronteiriços ao Brasil e Peru. Esse trabalho foi executado pelo coronel inglês Percy Harrison Fawcett, durante cinco anos. Depois Fawcett partiu em busca da Cidade Z nos confins do Araguaia, onde acabou canibalizado por índios. Fawcett desapareceu em 1925, na Serra do Roncador, juntamente com seu filho mais velho, Jack, e um amigo desse, Railegh Rimmell. O mistério que envolve esse caso inspirou George Lucas a criar o personagem Indiana Jones, na telona interpretado por Harrison Ford e dirigido por Steven Spielberg.
 
Da REDAÇÃO
Fotos: 1 – Eduardo Gomes. Demais: José Medeiros
Infografia: Édson Xavier

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