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31/05/2009 - 00:00

Traficantes revestem cápsulas de drogas com insulfilme automotivo

Nadja Vasques Da Redação Traficantes com cápsulas engolidas, identificados pela polícia como "mulas humanas", têm utilizado o insulfilme automotivo como invólucro para tentar driblar diagnósticos por imagem (Raio X e Tomografia Computadorizada - TC). O uso do material de alta resistência para embalar cápsulas contendo cocaína pura ou pasta-base é uma experiência inédita no mundo, adotada recentemente por traficantes bolivianos e brasileiros, que cruzam a fronteira entre San Matias, na Bolívia, e Cáceres, oeste de Mato Grosso, a 225 km de Cuiabá. O assunto virou tema de uma pesquisa desenvolvida pelo perito oficial e médico legista Manoel Francisco de Campos Neto, gerente da Seção de Medicina Legal da Politec de Cáceres. Ele pretendia demonstrar supostas interferências desse e de outros materiais usados como embalagem de cápsulas engolidas - látex de bexiga, dedos de luvas cirúrgicas, papel carbono e PVC - no diagnóstico por imagens. Todos esses materiais são encontrados em cápsulas expelidas pelos traficantes após prisão e atendimento médico em Cáceres. Para acelerar o processo, hospitais ministram nos suspeitos manitol com suco de laranja. Pelo ineditismo, o trabalho científico foi selecionado pela Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp) para representar o Brasil no XXI Congresso Internacional de Medicina Legal, realizado em Lisboa, Portugal, de 28 a 30 de maio. Além do médico Manoel Campos Neto, apenas outros 4 brasileiros foram patrocinados pela Senasp para participarem do evento. Para desenvolver a pesquisa, o médico legista utilizou informações da Delegacia da Polícia Federal (DPF) de Cáceres e do Grupo Especial de Segurança de Fronteira (Gefron), da Polícia Militar, responsáveis pelas prisões das "mulas humanas" na região de fronteira. Os dados utilizados por ele são referentes ao trabalho policial de 3 anos e meio (2005, 2006, 2007 e 1º semestre de 2008). Para obter cápsulas de cocaína, os fabricantes prensam a pasta-base em formas específicas e as envolvem em camadas de materiais resistentes e impermeáveis. As camadas variam de 8 a 14. Para lacrar a embalagem geralmente é utilizado fio dental e o aquecimento das bordas plásticas é feito com fogo, para dar formato de cápsulas. O objetivo é evitar a ação dos sucos digestivos e o consequente vazamento da droga dentro do organismo humano, que causa morte quase instantânea por overdose. A opção de atravessar uma fronteira carregando no aparelho digestivo dezenas de cápsulas de cocaína, conhecendo os riscos, transformam esses homens e mulheres em "suicidas em potencial", conforme o médico legista. Para provocar uma overdose, a quantidade de cocaína necessária varia de uma pessoa para outra e a dose fatal pode ir de 0,2 a 1,5 grama de cocaína pura. Cada cápsula contém, em média, 12 gramas do produto. Em junho de 2003, como legista, Manoel Campos Neto realizou a necropsia de um traficante brasileiro morto por intoxicação exógena (overdose). A vítima, C.T.R., 48, carregava 16 cápsulas no organismo, envoltas em látex, e uma delas se rompeu. A Polícia Federal confirmou que a substância encontrada no tubo digestivo do cadáver era de fato cloridrato de cocaína. Prisões de "mulas" aumentam - A Delegacia da Polícia Federal (DPF) de Cáceres registra aumento no número de prisões de "mulas humanas" com cápsulas engolidas que cruzam a fronteira da Bolívia com Mato Grosso via Cáceres. De janeiro de 2005 a julho de 2008, foram presas 71 pessoas nessa situação, sendo 14 em 2005, 21 em 2006 e 30 em 2007, além de 6 nos primeiros meses de 2008. A Polícia Federal trabalha com a estatística de que as prisões representam apenas 10% do total de traficantes que passam pela fronteira com cápsulas engolidas. Embora a maioria dos presos seja homem (43), a PF vem registrando ano a ano o aumento de prisões de mulheres transportando cápsulas engolidas. Foram 28 no período, sendo 2 em 2005, 7 em 2006 e 17 em 2007. Outras 2 no início de 2008. Do total de presos, 39 são bolivianos (de ambos os sexos) e 32 brasileiros (de ambos os sexos). A Polícia Federal também verifica que a faixa etária das "mulas humanas" vem diminuindo. A imensa maioria tem entre 20 e 30 anos, mas no período pesquisado foram apreendidos 3 menores de 18 anos. Como o boliviano N.E.R., 16, morador de San Matias. Preso em março de 2008, em Cáceres, o jovem expeliu 65 cápsulas de cocaína. Para a polícia, ele contou que trabalhava na zona rural de San Matias e recebia 50 bolivianos (R$ 17) por dia. Para fazer a travessia da fronteira ganhou R$ 300, dinheiro que seria usado para manter o vício dele em maconha e cocaína, drogas que ele já fazia uso há cerca de 1 ano. O recorde de cápsulas engolidas por 1 pessoa, conforme dados da Polícia Federal, é de 89, num total de 1,055 kg. Mas a maior quantidade encontrada embalada em cápsulas foi a de um homem que engoliu 83 cápsulas, totalizando 1,2 kg. Mulas andam muito e carregam peso - A expressão "mulas humanas" abrange mais do que o traficante com cápsulas engolidas. Ela se refere à pessoa que anda muito carregando peso. Nesse caso, "mula humana" também é o traficante que carrega droga na mochila ou amarrada a várias partes do corpo. A informação é do tenente coronel Celso Henrique Souza Barboza, que entre julho de 2007 e setembro de 2008 comandou o Gefron. Não há informação do Setor de Inteligência do grupo de que as cápsulas sejam fabricadas em San Matias. A principal hipótese é de que elas sejam manufaturadas em Santa Cruz de La Sierra. Mas é na cidade fronteiriça que os traficantes se organizam para empreender a jornada. Ali, a polícia tem informações da existência de várias casas de apoio para as "mulas humanas", onde elas podem se alimentar e descansar antes de prosseguir viagem a pé. Conforme o tenente coronel, quando começam a viagem de 72 km, partindo de San Matias em direção a Cáceres, as "mulas humanas", geralmente 3 de cada vez, são escoltadas por homens armados com fuzis 762, um que segue na frente do grupo e outro atrás. Em cada mochila são transportados cerca de 15 kg de cocaína. Por quilo de droga transportada, o traficante recebe cerca de R$ 200. A escolta foi adotada recentemente pelos traficantes, explica o tenente coronel Celso, por conta da ação de grupos rivais, brasileiros e bolivianos, que assaltavam as "mulas" assim que elas se aproximavam ou ingressavam em solo brasileiro. Antes dessa prática, o militar explica que as "mulas humanas" que transportavam drogas em mochilas ou presas ao corpo caminhavam sozinhas e desarmadas, pois caso se deparassem com a polícia, poderiam se livrar do carregamento sem risco de serem presas e autuadas por porte ilegal de arma. A ação das quadrilhas rivais também pode ter estimulado o uso cada vez mais frequente de "mulas humanas" com cápsulas engolidas, já que o carregamento só pode ser comprovado por meio do diagnóstico por imagem. O tráfico na fronteira é um negócio tão lucrativo que pessoas que não têm contato com drogas vêm formando consórcios para investir na atividade. O tenente coronel explica que o lucro de 100% apenas na travessia tem atraído empreendedores, que se unem em grupos para financiar a vinda da droga para o Brasil. Em San Matias, 1 kg de pasta-base custa R$ 5 mil, mas quando chega a Cáceres está valendo R$ 10 mil. Cada investidor recebe a porcentagem de lucro do dinheiro aplicado. "Temos conhecimento de vários grupos agindo assim". O lucro final, portanto, vai para quem financia o tráfico, e não para quem faz a travessia. Enquanto pesquisava a atividade das "mulas humanas", o médico Manoel Campos Neto analisou o perfil social desses traficantes. Verificou que, em sua totalidade, são pessoas muito pobres, que encontram na criminalidade a única oportunidade de sobrevivência."São pessoas sem escolaridade, que pertencem a famílias desestruturadas". Visitando San Matias, ele se impressionou com a precariedade da cidade, pouco desenvolvida e com ruas sem pavimentação. A principal atividade econômica de San Matias é o comércio de mercadorias importadas de Santa Cruz, como combustível, bebidas, perfumes, cigarros, pneus de veículos agrícolas e carros. Como sobre essas mercadorias não incidem impostos, brasileiros costumam entrar e sair da cidade trazendo esses produtos, em forma de contrabando. Pelo lado brasileiro, a mão-de-obra vem sendo cooptada nos vários assentamentos de trabalhadores rurais, que proliferam na região de fronteira. Trilhas na extensa fronteira - A fronteira entre Bolívia e Mato Grosso tem 983 km de extensão, sendo que 233 km ficam alagados metade do ano, na época das chuvas. Os 750 km restantes são de fronteira seca. O Gefron conta com 5 pontos de fiscalização fixos na fronteira com Cáceres, que são as barreiras do Limão, Corixa, Corixinha, Avião Caído e Roça Velha. Em cada uma dessas barreiras permanecem de 2 a 6 homens. Com exceção da Barreira do Limão, os outros postos são divididos com funcionários do Instituto de Defesa Agropecuária (Indea), que trabalham na região da fronteira controlando a contaminação do gado brasileiro pela febre aftosa. As barreiras móveis são feitas por viaturas, cada uma em média com 3 policiais. Atualmente, conforme o tenente coronel, apenas 4 viaturas do Gefron estão em condições de circular e as do Indea, que cooperavam com o trabalho, não estão mais trafegando. Pela extensão da área e dificuldade de acesso a alguns pontos, pode-se dizer que o sucesso do trabalho da polícia é, em parte, inteligência e, em parte, sorte. Campanas são realizadas em pontos diferentes das trilhas para tentar flagrar a passagem das "mulas humanas". Treinados em padrões de abordagem, policiais do Gefron são capazes de detectar, apenas por pequenas alterações no comportamento, quem está carregando droga ou quem está apenas atravessando a fronteira. Suspeitos de tráfico por cápsulas engolidas são levados para o Hospital Regional de Cáceres, que confirma ou não a presença da substância. Percorrendo trilhas, o Gefron descobre a passagem das "mulas humanas", que vão deixando rastros no percurso, como latas de refrigerantes e cercas de arame rasgadas. Os traficantes atravessam as fazendas seguindo sempre em direção ao rio Jauru, pois as margens do rio sempre estão limpas, facilitando o acesso à água. Funcionários de fazendas usadas como trilhas percebem o movimento noturno, mas por saberem do que se trata não denunciam. O rio Jauru, conforme o tenente coronel, tem sido usado para o escoamento da droga para Cáceres, pelo rio Paraguai, e também Poconé, já dentro do Pantanal. Há informações de que a rota também é usada para levar cocaína da Bolívia para Mato Grosso do Sul. Imprimir