Tradição, amizade e comunidade são algumas das palavras que vêm à mente ao ouvir a história do bolicho de Cáceres que completou 80 anos de existência, e que hoje se chama Mercearia Cruz. Localizado na extinta estrada da Fazenda Ressaca, que atualmente dá lugar à movimentada Avenida Getúlio Vargas, o comércio segue no mesmo prédio onde fora fundado pelo casal de poconeanos Maria Conceição Cintra e Antônio da Cruz e Silva, ambos de descendência europeia.
Seu Erivaldo da Cruz e Silva, um dos 10 filhos do casal, é quem hoje cuida do estabelecimento, enquanto a matriarca da família e os outros irmãos estão em Cuiabá, atuando em escritórios de advocacia e contabilidade.
“Estou só eu aqui lutando para aguentar esses últimos 40 anos. Sou um sobrevivente do governo, porque cada hora tem um novo imposto, taxações, multas... Não importa se o comércio é pequeno ou grande, ele tem que sobreviver a tudo isso”, afirma Erivaldo.
A fachada em cores neutras deixa em destaque o nome do estabelecimento e, dos dois lados, ainda é possível ver duas das três estrelas esculpidas na parede.
Estou só eu aqui lutando para aguentar esses últimos 40 anos. Sou um sobrevivente do governo, porque cada hora tem um novo imposto, taxações, multas
Ao longo da calçada, placas anunciam alguns dos diversos produtos que podem ser encontrados no bolicho do seu Erivaldo.
Desde doces, grãos, brinquedos, produtos de limpeza e até relíquias de décadas passadas como balanças, caixas registradoras e dinheiro da época. “Vendo de tudo: água, carvão, ração, chapéu, rapadura, batata doce, doce de figo, de goiaba, banana, mandioca, licores, ovos caipira. De tudo mesmo”.
De um lado, logo na entrada, um manequim com vários chapéus sobre o “pescoço sem cabeça” chama a atenção; do outro, vassouras e rastelos dividem espaço com os carrinhos de compras já marcados pelo tempo.
Abençoados por Deus
Ao longo desses 80 anos de existência, o bolicho da família passou por três administrações e, também, por três nomes diferentes.
Erivaldo conta que por coincidência ou força do destino, os três têm ligação com o divino. “É a presença de Deus em nossas vidas”, diz.
A primeira administração foi a de seu pai que, à época, chamou seu comércio de “Casa Três Estrelas”.
O nome fazia menção às estrelas esculpidas próximo ao letreiro.
Apesar do nome, o bolicho era mais conhecido como “Bolicho do seu Antônio Poconeano”.
A segunda gestão foi a de dona Maria, que assumiu os negócios quando o marido faleceu e chamou o comércio de “Casa Conceição”, fazendo menção ao seu sobrenome.
Com dez filhos para criar, ela saiu adiante aos trancos e barrancos. “Crescemos com a minha mãe naquela dificuldade. Tínhamos um açougue e criação de porcos. Meu pai abastecia toda a região da Gleba e de Mirassol e ela precisou organizar e ficar responsável por tudo”.
A terceira administração, e que perdura até os dias de hoje, é a de Erivaldo. Ele assumiu os negócios da família em 1983, quando saiu do Exército e deixou para trás o posto de sargento.
Ele batizou o bolicho de Mercearia Cruz, fazendo também alusão ao seu sobrenome. “Ficou a divindade. As estrelas do céu, Conceição de Nossa Senhora da Conceição, mãe de Jesus, e Cruz, a cruz de Deus. Sem perceber tivemos essa sequência. É um mistério que nem nós entendemos”, disse.
Anota aí!
Erivaldo conta que para manter as portas abertas por todos esses anos, ele precisou modernizar o seu negócio, mas foi mantendo as origens, conservando a variedade de produtos e o trato intimista com a sua clientela, que ele se tornou único na região.
O comerciante ainda mantém práticas como vender fiado aos clientes fiéis e mais antigos e o escambo com pequenos produtores.
Nesse tipo de transação comercial, sem o emprego de dinheiro, o pequeno produtor pode trazer um, dois ou mais sacos ou caixas de algum produto e, se preferir, pegar em mercadoria o seu pagamento.
“Dinheiro antigamente era difícil, você não via muito, era mais essas trocas de mercadoria e, assim, minha mãe manteve os 10 filhos”. “Meu pai não tinha nem caderneta, era tudo gravado na cabeça. Minha mãe já começou a anotar e eu modernizei mais um pouquinho. E hoje faço valinhos que a pessoa pode assinar”.
Trajetória de sucesso
Hoje aposentado, Erivaldo trabalha ao lado da esposa, Marina Cecília da Cruz e Silva. Ele diz ter simplificado muito o seu estabelecimento. “Já tive cinco funcionários, hoje simplificamos e estamos só eu e minha esposa”.
É a preservação daquilo que foi há muitos anos para que os novos possam conhecer “Tinha um guarda, o cara da informática, pessoas para fazer entregas. Já quase fechei e mudei de ramo, mas não consegui. Na minha rua mesmo tem uns dez salões fechados. O que está sobrevivendo aqui é só o meu e uma funilaria aqui do lado”. “Tenho duas filhas e cinco netos. Sou feliz, não tenho aquela ganância de riqueza, tenho o necessário, uma casa boa do lado do centro, uma fazendinha na beira de rio”.
Resiste ao tempo
Segundo a coordenadora do Grupo Folclórico Mato-grossense e Tradição, Elenir Antunes de Mendonça, de 68 anos, Erivaldo é um amante da cultura de Cáceres e o seu comércio é importante para a economia local, em tempos de vendas somente no atacado.
“É a preservação daquilo que foi há muitos anos para que os novos possam conhecer. Nesses moldes, é o único da região que faz esse intercâmbio, essa troca de mercadoria com os pequenos produtores”, disse.
“Ele trata seus clientes como amigos e a gente fica horas aqui batendo papo”.
Erivaldo diz que tem um banquinho no seu bolicho para a clientela se sentar e conversar.
“Eu preservo bastante do que eram os bolichos antigos. O cliente toma um café, às vezes tem um bolinho de queijo. Não é só comprar e ir embora, como no mercado grande”.