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22/11/2019 - 09:01

Jacobina, a fazenda mais rica da província tinha mais de 200 escravos - fotos e vídeo

Por Mirella Duarte

Rodinei Crescêncio

 (Crédito: Rodinei Crescêncio)
a longa e curvilínea estrada rumo à princesinha do Paraguai, Cáceres (a 230 Km de Cuiabá), o bioma muda pouco a pouco de cerrado à pantanal. Topos de árvores deixam de ser retorcidos e, com aquela infinitude de capins dourados, arvoredos tornam-se mais longos, dando espaço a pastos alagadiços típicos do pântano.

Na estrada, faltam 25 km para chegar à cidade e eis que surge a placa da Fazenda Jacobina. À beira da BR-070, antes mesmo da reportagem entrar, é possível perceber algumas estruturas antigas.

Entre ruínas e casarões imensos, um riacho cristalino atravessa a fazenda, dá a volta nas casas e movimenta uma roda de água centenária.
 
Foi nesta terra que se formou um latifúndio estabelecido em 1769 pelo português Leonardo Soares de Sousa, dando origem à fazenda que naquele período foi a mais rica da província e cenário de importantes personagens da história do Brasil. Ao longo dos anos, manteve-se como uma potência em produção de charque e açúcar, que abastecia também São Paulo e Rio de Janeiro.
 
Cerca de 200 escravos residiam na fazenda, o que, para o período, era muito, sendo que, em média, mil réis era o suficiente para a compra de um deles. Hoje, a mesma quantia, equivalente a R$ 123 mil reais. Ao considerar também que os prisioneiros eram trazidos de regiões litorâneas - um percurso difícil - e só quem tinha muito poder aquisitivo os transportava em longos caminhos. 
 
Numa caminhada pela Jacobina, é possível ver alguns peões circulando e trabalhando. Um deles se empenha em dar banho em uma égua prenha. Enquanto isso, o cheiro da roça se confunde com o da comida preparada entre largas paredes erguidas com trabalho escravo, séculos atrás.
 
Rodinei Crescêncio
Especial Cáceres
 
Sebastião é dono da terra  e vive em ambiente cheio de histórias., usa bengalas e "chinelas"
 
A caminhada continua. Sem campaínha, a batida na porta pesada e grossa de madeira precisa ser firme para chamar os atuais donos das terras. A janela faz um grunhido, um rapaz jovem diz que Sebastião Lara, dono da fazenda, está terminando de se arrumar, mas logo sai.

A equipe senta entre os sofás e cadeiras e aguarda o primeiro entrevistado, que chega arrastando a "chinela" ao se firmar em uma bengala, após atravessar uma sala de móveis antigos e retratos de família.

Começa, então, a narrativa de mais uma série de reportagens RD Exclusivo. Nesta série, o  conta um pouco do que foi o início da história do Brasil no extremo Oeste, permeado por guerras e revoluções, pluraridade de etnias nativas e imigrantes de todos os cantos do mundo. 

Rodinei Crescêncio
Especial Cáceres
Historiador Domingos Sávio, da Unemat, um dos que mais conhecem região das fazendas

Segundo o historiador Domingos Sávio, professor da Unemat, um dos maiores conhecedores do Velho Oeste pantaneiro,  na primeira metade do século XIX toda esta região foi disputa entre Portugal e Espanha. Quando as frentes se encontraram foi necessário um tratado para respeitar a fronteira, o Tratado de Madrid, que se sobrepôs ao Tratado de Tordesilhas e criou novos limites de uma divisão territorial. “Em 1750 as duas coroas estabeleceram o tratado para delimitar o que seria o território Sul-Americano, isso não quer dizer que tudo estava resolvido. Por um princípio jurídico do direito latino, que foi recuperado por Portugal na negociação do Tratado de Madrid e usado para justificar o domínio sobre estas terras”, explica.
 
Rodinei Crescêncio
Igreja Matriz Cáceres
O Marco do Jauru, que simboliza essa demarcação, ainda se encontra instalado na praça Barão do Rio Branco, e ao redor estruturas foram se erguendo, como à igreja Matriz de Cáceres.

O princípio jurídico que o historiador menciona, em sua tradução significa que não há direito sem sociedade, nem sociedade sem direito. Portanto, os portugueses se empenharam em popular as regiões intencionalmente e acelerar a colonização para que tivessem direito sobre as terras. Processo, este, que Jacobina se fez essencial para atrair novos moradores.
 
Foram inúmeros os hóspedes da movimentada fazenda, entre eles, o viajante francês Hércules Florence, que integrou a Expedição Langsdorff no interior do Brasil, em torno de 1825 e 1829, e registrou em seu diário posteriormente transformado no livro Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas, publicado em 2007 pelo Senado Federal. Um documento considerado de suma importância por pesquisadores do período.

Entre as menções do viajante Florence, ele afirmou que em 1827 a Jacobina era a mais rica fazenda da Província. "Tinha 60 mil cabeças de gado, 200 escravos e igual número de alforriados", ou em que escreveu que “As roças abrangiam canaviais, plantações de mandioca, feijão, cereais e café para abastecimento dos núcleos adjacentes. Possuía também engenho movido por força hidráulica”, mas reforçava sempre que a fazenda era “A mais rica fazenda da Província, tanto em área como em produção”.
 
Rodinei Crescêncio/Reprodução
Especial Cáceres
Quadro de Francisco Sabino, líder da revolução Sabinada - ele foi acolhido e morreu na Jacobina

Desde então, segundo o diário do viajante, João passou a se exibir por possuir “tantas terras quantas o rei de Portugal”. Após a morte de João Pereira Leite, que casou com a única filha do sogro, Maria Josefa de Jesus. Sua esposa, junto aos filhos, tocou a fazenda. Seu segundo filho com João, que recebeu o mesmo nome que o pai, tornou o braço direito da mãe na expansão dos negócios da família.

Sabinada

Quando o imperador Dom Pedro I abdicou do poder em 1831, seu herdeiro do trono Dom Pedro de Alcântara tinha cinco anos de idade. Com isso, a constituição brasileira do período determinava, neste caso, que o país fosse governado por regentes, até o herdeiro da coroa atingir a maioridade.

Isso motivou algumas revoluções e guerras, como a Guerra dos Farrapos, contra o governo imperial do Brasil ou, posteriormente, movimentos que ocorreram em outras províncias brasileiras, servindo de influência para a Revolução Liberal que ocorreu em São Paulo em 1842 e para a revolta Sabinada na Bahia em 1837.

O principal líder da revolução baiana foi detido em 1838. Chamava-se Francisco Sabino Álvares da Rocha Vieira. Após ser julgado e condenado à prisão, recebeu pena de exílio. No caminho de Vila Bela da Santíssima Trindade, adoeceu nas vizinhanças da fazenda Jacobina e por lá encontrou abrigo e proteção do major João Carlos Pereira Leite, que, naquele momento, era o senhor da Jacobina. Na fazenda, Sabino exerceu a medicina, atendeu enfermos de toda a província e por lá permaneceu até a sua morte em 1846.

Disputa de Espanha e Portugal e a importância da Jacobina

Jacobina se tornou importante para a história e formação daquelas localidades, por também ser anterior a Vila-Maria do Paraguai, cidade que posteriormente seria São Luiz de Cáceres. O pesquisador relata que havia uma grande população indígena pelas redondezas, inclusive, de chiquitanos que naquele período estavam sedentarizados, não viviam mais em suas aldeias e eram cristãos.

 “Os chiquitanos tinham atividades, eram carpinteiros, serralheiros ou sabiam lidar com o gado. Toda essa mão de obra interessava aos portugueses. Os jesuítas foram expulsos do território espanhol e, aqui, criou-se um ambiente de tensão entre chiquitanos e jesuítas, o que favoreceu os portugueses manterem os chiquitanos nestes territórios. Isso tudo, justamente no processo de criação de Vila Maria”, ressalta.

Herdeiros ousando a fronteira e alterando os territórios

O major João Carlos Pereira Leite Filho, ocupou o papel do último grande chefe da Jacobina. Foi tomando as terras até a beira do Rio Paraguai e sua primeira parada foi pelo que se situa na atual fazenda Barranco Vermelho, requerendo cada vez mais territórios. “Não contente com estas terras, cruzou o Rio Paraguai da margem esquerda para a margem direita, fundou a fazenda do Cambará até uma região que vai da foz do Rio Jauru a lagoa Uberaba, mais de 100 km no sentido norte ao sul, e 70 km no sentido leste e oeste, com o resultado de 1 milhão de hectares”, descreve o historiador Domingos.
 
Nesta expansão mais ao Sul, há uma serra hoje intitulada Morro Pelado, que é rasteira e sem vegetação. Antes, se chamava morro do Escalvado, que se abreviou morro Escalvado, até se tornar morro Descalvado. Região que virou mais um entre tantos retiros do major, mesmo que naquele período ainda houvesse uma aldeia indígena dos Guató na localidade. “Lá de cima existe uma visão do pantanal muito grande, o que possibilitou observar a chegada dos espanhóis. Por isso, ali mesmo foi criado um local de observação militar”, explica.

Acima do Descalvados e Foz do Jauru, estava o marco, que estabelecia naquele local pelo Tratado de Madri que dizia que na margem esquerda do Rio Paraguai era de domínio português e na margem direita de domínio espanhol. “Quando major João Carlos pula da margem esquerda para margem direita e ocupa esse 1 milhão de hectares de terra, depois da independência do Brasil, na prática o que ele faz foi empurrar o território brasileiro da margem esquerda, seguindo 70 km para frente do que era território espanhol. Deslocando a fronteira do Brasil. A fazenda Cambará é a que originou a Descalvados, pois Descalvados era só este retiro”, finaliza.

Desde então, por estar no centro desta península e a margem do rio, vias fluviais e outros motivos de lucratividade comercial, João Carlos começou a redirecionar as riquezas da família, como produção agrícola e todo gado de Jacobina para a Descalvados. Abrangeu os negócios e passou a vender rebanhos para Uberaba e Rio de Janeiro.

Fluxo mercantil que foi interrompido pela Guerra do Paraguai, que teve parte de Mato Grosso invadida e conflitos. Ao terminar a guerra em 1870, o major teve o gado preservado e o fluxo do capital mercantil se repõe com força. “Corumbá virou uma cidade importante e houve um fluxo de imigrantes muito grande para lá, a cidade se estrutura como um interposto comercial. O primeiro estrangeiro que olhou para a Descalvados e estabeleceu um acordo com João Carlos foi um argentino chamado Rafael Del Sar e fundou na Descalvados uma charqueada, o que para o major foi uma boa iniciativa. O argentino reproduziu uma pratica muito comum no norte da Argentina e no Uruguai, trouxe essa experiência platina”, descreve.

Mais tarde, em 1881, João foi visitado por um uruguaio de origem catalã. Ele era Jaime Cibils Buxareo, cuja família tinha uma rede e fabrica de extrato de carne no Uruguai, e este extrato de carne era exportado para a Europa. O uruguaio tomou conhecimento que o major queria vender a fazenda, e a comprou em um leilão junto a charqueada, de propriedade do argentino Rafael Del Sar e nela instalou uma fábrica de extrato de carne, dando início a um dos períodos mais relevantes da Descalvados. A localização facilitou o transporte fluvial dos produtos e a exportação para a Europa, ao passar o bastão dos Pereira Leite que partiram da Jacobina aos interesses comerciais internacionais.

Há três gerações com a família Lara

Em entrevista ao , aos 72 anos, Sebastião Lara conta à reportagem que nasceu na fazenda e é um dos mais jovens dos 11 irmãos, os filhos de Vitório da Silva Lara, que aderiu as terras em 1912. Seo Sebastião, casou-se com Terezinha Lara e, juntos, tiveram três filhos. Dois formados em medicina e outro que é veterinário, o Adriano que abriu a janela na chegada em Jacobina e recebeu a reportagem recém-chegado do trabalho no campo. 

Segundo Sebastião, há um registro de 80 famílias de pessoas que foram escravizadas na fazenda em um documento na paróquia de Cuiabá. Além de muitas documentações levantadas por historiadores, engenheiros e outros especialistas que há anos visitam a fazenda.
 
Em 1932, a família Lara ainda produzia pinga, açúcar e rapadura, além da agricultura de banana e mandioca. “Nasci aqui em 1944, estou prestes há completar 74 anos. Meu pai permaneceu aqui comigo na fazenda até os 76 anos. Do jeito que ele comprou a fazenda ela continuou, até o final dos anos 70 ela funcionava igual. Meus avós maternos eram portugueses e da família, meus avós paternos peruanos. Meus pais se conheceram na fronteira e se casaram”, conta.

Lúcido e bastante ciente da importância histórica das terras, foi o único dos irmãos que manteve sua parte na fazenda, desde que o pai adquiriu as terras. “Cresci aqui, tem pessoas que foram enterradas por essas redondezas. Me lembro que minha mãe ia de cavalo com meu pai para a cidade. Além de Jacobina, a fazenda Uberaba no Pantanal era do meu pai e foi vendida para presidente da república João Goulart naquela época”, recorda.

Hoje, mil hectares ainda pertencem à família, que além de tanques de piscicultura de pacu e outros peixes, abrem para visitação de escola e pesquisadores, tentam preservar as ruínas e o pouco que não desmoronou com o tempo. “Eu vi Cáceres crescer e de uns 30 anos para cá que chegou o progresso. Meu pai dizia que ainda viríamos isso aqui progredir muito”, recorda.

O que ainda se mantém nesta linha do tempo, é uma igreja com santos antigos, o casarão originalmente construído pelos senhores do engenho, parte de algumas senzalas, baixas, sem circulação de ar e bastante apertadas. Equipamentos usados pelo engenho, rodas de água que circulam pelos aos redores das estruturas construídas desde a província. Apesar de ser tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, ainda não teve intervenção de restauração pelo Governo do Estado.

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  • por Olga, em 28.12.2019 às 00:01

    Um texto que encanta pela narrativa. Parabéns, Domigos Savio!!

 
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