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04/07/2016 - 13:32

Chegamos ao fundo do poço, diz educador

Por Alecy Alves

Júlio Furtado: “crianças estão carecendo de atenção porque seus pais só conseguem olhar para seus celulares”

Júlio Furtado: “crianças estão carecendo de atenção porque seus pais só conseguem olhar para seus celulares”

Em Cuiabá para ministrar uma palestra para professores da rede privada, o doutor em Ciências da Educação, Júlio Furtado, concedeu entrevista exclusiva ao DIÁRIO para falar sobre desvalorização profissional e motivação do professor, além da reorganização do saber e encorajamento do aluno, entre outras questões. 

Considerado um dos maiores estudiosos da relação aluno-professor e dos meios de ensino e aprendizagem, Furtado é graduado em Pedagogia e mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). 

Ele, que também é psicopedagogo formado pela Universidade de Havana, Cuba, abordou ainda as dificuldades de ensinar crianças e adolescentes da “Geração Z”, esses que praticamente não se comunicam verbalmente, dormem e acordam presos ao celular. 

Furtado ainda discorreu sobre o papel da família na educação dos filhos, que, segundo ele, não vem sendo desempenhado como deveria – e que a educação brasileira chegou ao “fundo do poço”. 

Diário - Como o aluno pode reorganizar o seu saber? 

Furtado - Sendo submetido a desafios, a situações que quebrem seus esquemas mentais e o forcem a pensar de outra maneira. A reorganização do saber do aluno é resultado do quanto a escola o instiga a buscar novas respostas. 

Diário - De que forma o professor o encoraja? 

Furtado - Em geral, o professor encoraja tendo uma postura apreciativa, ou seja, valorizando o que o aluno fez de certo, focando o sucesso, por menor que seja. Essa postura dá ao aluno vontade de fazer mais, de buscar a resposta certa, de refazer o que está errado. É fundamental, nessa postura, o cuidado do professor para se referir apenas à tarefa e não desqualificar o aluno como um todo. Dizer, por exemplo, "você precisa tentar de novo, mas eu sei que você vai conseguir porque você é inteligente". 

Diário - O que é colocar aluno e professor em movimento? 

Furtado - O professor coloca o aluno em movimento quando ele o instiga a buscar soluções, resolver desafios e pesquisar respostas e se coloca em movimento quando, observando que o aluno não está tendo sucesso, busca constantemente novos caminhos para facilitar-lhe a aprendizagem. 

Diário - Como o professor pode fazer essa investigação, ou observação contínua da aprendizagem em uma sala com 30 ou 40 alunos? 

Furtado - O ideal é que seja, no máximo, 30 alunos por turma, em se tratando de adolescentes, e 25 se crianças de 7 a 10 anos. Tenho visto com frequência esse número ser respeitado, mas, em alguns casos, quando o professor tem que lidar com turmas de 40 alunos ou mais, ele precisa trabalhar com tarefas grupais que o permitam identificar se os objetivos estão sendo atingidos. É mais difícil, mas não é impossível. Acho que a atitude do professor é o que conta. Acompanho muitas escolas em que os professores não fazem avaliação contínua mesmo em turmas com 20 alunos e outros fazem trabalhos excelentes em turmas de 40. 

Diário - Aqui em Cuiabá, professores aprovados em um concurso recente da rede publica municipal de ensino relatam situações de surpresa e medo com o comportamento de crianças de séries iniciais, alunos com idade entre 6 e 7 anos, sem limites, que desafiam e desrespeitam os professores. Como ser professor em uma sociedade dessa? 

Furtado - São muitas as considerações com relação a essa pergunta. Façamos ao menos três, que julgo fundamentais: 

1ª - Escola e família precisam estar em sintonia para estabelecerem juntas os limites que a família não conseguiu estabelecer até então. A gestão da interação escola-família é, hoje, uma dimensão da escola que exige atenção prioritária. 

2ª - É preciso que tenhamos professores bem assessorados para desenvolverem seu trabalho com essa faixa etária que ainda exige o lúdico como principal estratégia. Essa faixa etária ainda precisa aprender através de jogos e movimento. Ficar sentado, prestando atenção comportadamente ainda é atitude que exige mais concentração do que eles podem dar. 

3ª - Ao promovermos assembleias de classe nessa faixa etária, os resultados costumam ser muito bons, pois os alunos aprendem a se comprometer com o grupo e, com isso, desenvolvem o sentido de compromisso coletivo. 

Diário - Se a autoestima é o combustível do professor no processo ensinar e apreender, como manter-se motivado para o exercício da profissão se o desrespeito e o medo muitas vezes o dominam? 

Furtado - É fato que o desrespeito à profissão em todos os sentidos contribuem para a diminuição da autoestima do professor e para a desmotivação com a profissão. Antes de mais nada, o professor é gente e é afetado por todo esse processo em que estamos inseridos. Penso que a capacidade de se auto motivar do professor não é infinita. Tenho visto muitos professores altamente comprometidos com a sua profissão desistirem, o que é muito triste para a Educação como um todo. Acho que chegamos ao fundo do poço e a mola propulsora será o quanto que educar nos faz feliz, mesmo com os entraves. Lembro-me nesse momento de uma entrevista da grande Fernanda Montenegro que, ao ser perguntada o que ela diria a alguém que quisesse seguir a carreira de atriz, surpreendeu a repórter dizendo: "Eu diria desista!". Após o choque da resposta, explicou, "Se a pessoa não insistisse e, de fato, desistisse, é porque não tinha a energia necessária. Mas, se insistisse na ideia e dizendo que não saberia viver sem o ato de educar, eu diria: vá em frente!". 

Diário - Além de todas as questões citadas acima, os professores ainda enfrentam a desvalorização profissional, ou seja, salários baixos. Como superar ou se manter estimulado a prosseguir da missão de bem ensinar? 

Furtado - Penso que a luta pela dignidade profissional é contínua e de todos os professores. Inclusive dos poucos que são bem remunerados. Trabalhar em várias escolas para montar um salário razoável impede que o professor se dedique ao auto aprimoramento e, consequentemente, traz desgastes a sua atuação profissional. Acredito, porém, que fazer um bom trabalho em sala de aula deve ser compromisso pessoal com sua própria consciência e lutar por melhorias de condições precisa ser compromisso coletivo com sua categoria. Trabalhar equivalente ao que ganha só vai desqualificar cada vez mais o professor. 

Diário - Se é difícil lidar com a geração Y, que é filha que tem características e vícios do aparato eletro-eletrônico e herdeira desse e de outros aparatos, como educar a Geração Z, que praticamente não se comunica verbalmente, dorme e acorda preso ao celular? 

Furtado - A geração Z me preocupa em especial porque ela deseducou os mais velhos. Crianças estão carecendo de atenção porque seus pais só conseguem olhar para seus celulares. Acho que esse comportamento já é uma epidemia social. Estamos todos nós precisando de quem nos reeduque primeiro. 

Diário - Onde entra o papel da família? Para o senhor a família está transferindo a educação dos filhos às escolas e, consequentemente, aos professores? 

Furtado - A família precisa educar para os valores morais de forma que a criança chegue à escola em condições de ser educada para os valores sociais, coletivos. Já sabemos que a família não vem cumprindo bem o seu papel. Esse discurso já é antigo e batido. Com relação a essa questão eu gostaria de deixar algumas reflexões: 

1ª - Se a escola cruzar os braços diante da inabilidade da família em cumprir o seu papel, podemos fechar todas as escolas e pensar num novo modelo de educação socializadora. Penso que a escola precisa se reinventar nesse sentido. Oferecer espaços de discussão e formação da família é um dos caminhos que tenho visto dar bons resultados. 

2ª Apontar dedo uma para outra só vai reforçar o conflito. Nesse tocante afirmo que "Somos todos Família!". Professores também são pais e mães que estão em conflito na educação de seus filhos. Filhos de professores também apresentam problemas na escola (E como apresentam!). Lembro isso para que nos sensibilizemos que só a soma de forças nos levará a algum bom resultado.

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  • por Thiago, em 27.08.2016 às 10:38

    Excelente entrevista. Apreciei muito a passagem que fala "Trabalhar equivalente ao que ganha só vai desqualificar cada vez mais o professor...". Conheço muitos colegas que passam pela faculdade, sabem que o professor é um cargo desvalorizado pelo estado, pelo município, porém insistem em fazer concurso público para "trabalhar somente de acordo com o que ganha", ou seja, não planejam aulas, trabalham com filmes para empurrar goela abaixa os chamados "resumos". Acredito que o estado deve remunerar bem os professores, para que além de professores estes possam ser também educadores. Mas abraçar uma profissão com conhecimento prévio de sua precariedade, justificando assim seu baixo rendimento porque não vai "ganhar bem", é o fim da picada.

 
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