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24/07/2021 - 09:24

Caso do Advogado de Goiás

Com sete anos de carreira, o Advogado Orcélio Ferreira Silvério Júnior, rendido, no chão e algemado, foi alvo da covardia dos golpes 1º tenente Gilberto Alves da Costa, na tarde de quarta-feira (22/7), após tentar interceder por uma pessoa em situação de rua, que também foi agredida.
 
O vídeo divulgado nas redes é especialmente chocante, e notícias dão conta de que a OAB-GO, com a participação do Conselho Federal, vem tomando medidas ostensivas contra a covardia encenada pela PM-GO, que é de dar ânsia não só por ser a vítima um Advogado, ilustre colega, mas por ser aquele homem gente, uma pessoa.
 
Qualquer um sabe que o tratamento dispensado com extrema covardia pelo policial, não se dá sequer a um porco, quanto mais àquele que foi eleito pela CF como guarda da ordem jurídica, o Advogado.
 
Embora estarrecedora a atitude covarde do 1º tenente Gilberto Alves da Costa, não me surpreende que tenhamos chegado ao presente estágio, mais especificamente em relação ao tratamento dispensado ao Advogado pelos Agentes do Estado, em situação no mínimo simbólica para todos aqueles que, de fato, com os olhos que têm, querem enxergar pelo caleidoscópio de situações a que profissionais tão importantes devem se sujeitar para, em última instância, exercer a defesa, quase que num exercício diário de humilhações.
 
Ao que parece, estamos no limite do curso do completo declínio do homem médio, para volvermos à ancestralidade. Aquilo fardado, em alguma altura, era uma espécie de neandertal, incentivado pelo discurso grotesco recente do Governador Caiado, de semanas atrás, quando em entrevista sobre a caçada e morte do famigerado Lázaro, dava endosso à violência policial como política de segurança pública do Estado.
 
Vendo o vídeo, confesso que me lembrei até de Stanley Kubrick, e uma de suas obras mais importantes, “Full Metal Jacket”, oportunamente traduzido no Brasil como ‘Nascido para matar’, de 1987, que traz como enredo a atmosfera construída pelo treinamento de um soldado para guerra Vietnã, que rompe com a vida civil pré-existente, numa espécie de renascimento pelo ódio e senso de violência puros.
 
Mas, devo dizer, e o faço com renovada tristeza, nada disso me deixa surpreso. Nem a covardia do 1º Tenente, e nem o fato de a covardia ter sido empregada contra um Advogado que fazia – pelo que dão conta – o que qualquer Advogado deve fazer: defendia outra pessoa.
 
A grande questão é que a agressão experimentada pelo Advogado Goiano não é um triste fato isolado de violência contra a advocacia e violação das prerrogativas, das mais comezinhas e mais conhecidas às menos corriqueiras.
 
A grande verdade é que a violência e as atitudes de violação dos direitos dos Advogados acontecem com cada vez mais frequência, e tem causas bem conhecidas pela Ordem dos Advogados do Brasil, que com o passar do tempo, à escora dos costumeiros discursos de momento e notas de repúdio, acabou permitindo que se normalizassem atos pequenos e pretensamente irrelevantes de violação de prerrogativas, e hoje colhe imagens monstruosas e tristes de colegas, à luz do dia e em plena praça pública, prostados, algemados, apanhando na cara de um Agente do Estado que, antes de tudo, assim como acontece quando se trata de promotores e juízes, deveria ter muito receio de encostar a mão em um causídico, ou quem quer que seja.
 
No esteio dessas violações, o braço do tenente na lata da cara do Advogado não deixa de ser a consumação literal de um ânimo muito representativo, bastante presente na institucionalidade brasileira, que resolveu eleger a Advocacia, quando não precisa dela, como uma espécie de mal necessário, a ser simplesmente tolerado.
 
Não nos enganemos. Os tapas na cara do Advogado, prostado e arrastado pelo chão, algemado, sem defesa – muito embora em seu exercício –, são a cumieira do entusiasmo que, em maior ou menor grau, anima servidores que fazem pouco dos Advogados, anima as resoluções que obrigam a submissão dos causídicos a detectores de metais e revistas nos Órgãos Públicos e Fóruns, que nega seu acesso aos Juízes e aos Promotores sem justificativa fundada, que tenta, vez por outra, criminalizar o exercício da Advocacia criminal, transformando o Advogado em réu, que avilta honorários, que grampeia Advogados, que impede o Advogado de ter acesso ao cliente, dentre outras tantas maneiras criativas de tentar diminuir a importância da função, em grotesco processo de banalização no país.
 
As ofensas contra o Advogado que apanhou na cara em praça pública, doem na alma de qualquer Advogado. É coletivamente vergonhoso, frustrante. Mas agora, em paralelo à preocupação em exigir que o 1º Tenente seja expulso da corporação e a PM-GO tire do bolso o valor devido para arcar com a vergonha moral que fez a classe como um todo passar, é necessário que Advocacia se pergunte se já não é hora de promover um profundo reencontro consigo mesma, repensar posições, repensar a própria Ordem e seus posicionamentos, repensar a estrutura política, o modo como ela tem se organizado, as consequências dessa organização, os processos de decisão política, a própria democracia nas escolhas que cabem aos Advogados e não só a parte deles, e exigir que os próprios representantes constituídos da OAB propiciem as condições para que este reencontro, de fato, aconteça.
 
Advogados, pelo país, não podem continuar experimentando o que experimentam diariamente. Este reencontro, mais do que a própria responsabilização dos Agentes que violem prerrogativas, é fundamental. É difícil acreditar que a situação possa encontrar algum calão de mudança séria, se esse reencontro da Advocacia com a Advocacia não ocorrer, e se não forem superadas questões sensíveis internas à Classe, como, por exemplo, a participação ampla dos Advogados nos processos de escolha e representação (Quinto Constitucional/Eleição do Presidente do Conselho Federal).
 
Bem é isso... Não poderia deixar esse absurdo acorrido passar, sem tecer essas considerações, que humildemente lanço aqui neste espaço. Também não posso terminar sem prestar referência elogiosa ao colega agredido. Ouso fazer um empréstimo de trecho famoso do escritor Érico Veríssimo, para, com algumas poucas adaptações, prestar homenagem ao colega que se atirou em defesa do morador de rua, atuando quase quixotescamente.
 
Afinal, no espeque das palavras de Veríssimo, “tem-me animado até hoje a ideia de que o menos que o Advogado pode fazer, numa época de atrocidades e injustiças como a nossa, é acender a sua lâmpada, fazer luz sobre a realidade de seu mundo, evitando que sobre ele caia a escuridão, propícia aos covardes e aos tiranos. Sim, segurar a lâmpada, a despeito da náusea e do horror. Se não tivermos uma lâmpada elétrica, acendamos o nosso toco de vela ou, em último caso, risquemos fósforos repetidamente, como um sinal de que não desertamos nosso posto.”
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