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08/02/2021 - 10:22

Natalino Ferreira Mendes VIVE!

Nossos nomes também fazem parte de nossas experiências e aventuras por este chão. Marcam nossa identidade. Uma identidade que está para além dos documentos, dos registros e dos papéis. Para além de nossa certidão de nascimento. Uma identidade que é construída no coletivo, a partir de nossas relações e práticas com o outro, com a diversidade. É pelo nome que somos chamados. Ou pelo apelido, que não deixa de ser um nome. Pode até ser mais curto, às vezes curioso, mas, como eu disse [e repito], não deixa de ser um nome. É pelo nome que nos reconhecemos no mundo, que vamos formando o nosso “eu”, estabelecendo as fronteiras de nossos corpos e dos espaços que ocupamos.
 
Para fora de nós, é pelo nome que chamamos tudo o que está ao nosso redor. Os objetos, as instituições, os lugares da cidade e do campo, os ambientes públicos e privados, não estão por aí soltos, jogados ao vento, dispersos, sem raízes ou vínculos com a comunidade. Para cada uma dessas coisas há um nome salvaguardando a sua unidade, marcando e fazendo anotações sobre o seu próprio percurso. Sua presença, então, não é decorativa. Sua razão de ser não se resume a uma mera formalidade. Sua existência não é fruto de uma mera estratégia de marketing ou de um jogo do mercado.
 
Desandei a falar sobre nomes, não por conta de uma crise existencial ou coisa parecida. Desandei a falar sobre isso, assim, logo de cara, porque foi exatamente essa a reflexão que eu fiz quando soube da notícia de que estão tentando mudar o nome da Escola Estadual Professor Natalino Ferreira Mendes, em funcionamento há algumas décadas, em Cáceres-MT, minha cidade natal.
 
Em artigo publicado neste Jornal, na data de 21 de dezembro de 2020, tentando me somar a tantos outros colegas professores que já haviam se posicionado a respeito, e apostando em um debate plural, democrático e propositivo sobre um projeto nacional para a educação brasileira, manifestei-me contrariamente à militarização das escolas da rede de educação básica do Estado de Mato Grosso, apontando, dentre outros, o caso da Escola Estadual Professor Natalino Ferreira Mendes, bem como, manifestei-me contrariamente à chamada gestão compartilhada entre corporações policiais e a Secretaria Estadual de Educação (SEDUC).
 
Em resumo, na ocasião daquele artigo, pretendi colocar sobre a mesa, para juntos ponderarmos, o fato de que quando falamos em educação para os estudantes das escolas públicas, a “disciplina”, como solução salvadora, é sempre lembrada, e, quando falamos em educação para os estudantes que frequentam outros espaços, digamos, mais privilegiados, as soluções são sempre outras, variadas. Cultura, música, literatura, teatro, esportes, intercâmbios, viagens, terapeutas, aulas de reforço, curso de idiomas, aulas de dança, xadrez... são as opções que se abundam para esse último público. Pretendi, também, na ocasião daquele artigo, dentro do possível, colocar sobre a mesa, para juntos ponderarmos, que tipo de educação nós queremos, e, igualmente, quais são os efeitos produzidos a partir dessa “escolha”, suas implicações e desdobramentos.
 
Faço esse breve resgate, pois não podemos olhar para o que está acontecendo, sem compreender suas condições de produção, seus vínculos constitutivos, tendo em vista que a tal proposta de mudança do nome da Escola Estadual Professor Natalino Ferreira Mendes, que anda circulando por aí, apareceu e foi no vácuo de sua militarização. Esse está sendo o mote para a mudança. Se não for o principal, pelo menos, diria que está sendo uma “janela de oportunidades” para que isso aconteça.
 
Mas, frente a essa iniciativa, que também me contraponho, é importante nos perguntarmos: há uma justificativa para a mudança? E se houver, qual seria o respaldo social para fazê-la? Há fundamentos críveis para isso? Ou, como está na moda, fundamenta-se, exclusivamente, no absurdo, no ódio, ou em um revanchismo vazio? Que caminho é esse que estamos percorrendo? Que caminho é esse que querem nos impor “goela abaixo”?
 
Como comentei, sobre a militarização da escola e as falsas equivalências propagandeadas como verdades absolutas – cito algumas: “com disciplina e ordem garantimos a aprendizagem dos estudantes”; “com índices elevados de aprovação dos estudantes, em provas de ranqueamentos, garantimos uma formação educacional cidadã” – eu já havia me manifestado. Porém, agora, não obstante a militarização anunciada da Escola Professor Natalino Ferreira Mendes, ainda há a ideia de mudar o seu nome. Tenho alguns palpites: militarizada a escola, talvez queiram militarizar o seu nome, submetê-lo à sua hierarquia, aos seus ditames, colocar um outro que seja subordinado e mais apropriado  à “nova ordem”; ou talvez queiram escolher um cuja “relevância” esteja atrelada à corporação responsável pela administração da escola, independentemente dos laços existentes entre o nome atual e o território. Pelo visto, nada pode escapar. A “operação” [essa de militarização da escola] precisa ser completa, de modo a não deixar vestígios de que um dia existiu um outro horizonte, um outro jeito de se contar e perceber o passado e de se refletir sobre o presente.
 
A turma do “deixa disso” pode questionar: para que tanto estardalhaço em torno de um nome? É só um nome mesmo, e nada mais! Longe de um alarmismo sensacionalista de minha parte, não podemos nos descuidar da preservação de nosso patrimônio humano, cultural e histórico; não podemos desprezar nossas particularidades, características e traços; não podemos permitir que vozes isoladas, muitas vezes “anônimas”, apaguem a  trajetória de tantos homens e de tantas mulheres que por aqui viveram – cacerenses de nascimento e/ou de coração – doando-se, trabalhando arduamente, contribuindo com sua sensibilidade e criatividade, em meio à escassez, para a construção de nossa cidade e de nossas cidadanias. A eterna vigilância é a condição indispensável para que aquilo que somos [o que nos constitui] e para que aquilo que conquistamos [a duras penas] não pereça, não retroceda.
 
Primeiro levam nossos nomes, depois nossas referências e, por fim, nossas memórias. Resta-nos o caos: um cotidiano uniformizado, sem cores e sabores, sem temperos e cheiros; um cotidiano sem esperanças, em que as nossas potencialidades para deslocar a mesmice são censuradas e a nossa história é revisada.  
 
Natalino Ferreira Mendes* VIVE!
 
*Natalino Ferreira Mendes, nasceu em 1924, em Cáceres-MT. Teve uma atuação apoteótica no campo das letras como poeta, professor, historiador e membro da Academia mato-grossense de Letras.
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