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21/12/2020 - 09:44

Aos estudantes de instituições públicas a disciplina

A educação é assunto para todas as horas. Penso até que anda batido dizer isso, mas, enfim, aqui estamos, mais uma vez, para tentar problematizar a questão. Talvez a proximidade das festas de final de ano favoreça o clima para uma conversa ou aguce a sensibilidade geral para pontuarmos mais algumas ideias sobre as nossas “expectativas” para a área, bem como, e, especialmente,  sobre as ações e os burburinhos governamentais, em vários níveis [municipal, estadual e federal], destinados ao setor.
 
Desde a semana passada, venho acompanhando, com muita estranheza, as notícias veiculadas na imprensa local sobre a implementação de uma “gestão compartilhada” na Escola Estadual Presidente Médici – localizada na capital do estado de Mato Grosso, Cuiabá – entre a Secretaria Estadual de Educação e a Polícia Rodoviária Federal (PRF). Segundo o plano divulgado, e em fase de preparação para 2021, a Secretaria ficará responsável pela política pedagógica e a PRF pela direção. Em Cáceres-MT, minha cidade natal, a situação não é tão diferente. Por aqui, querem converter a Escola Estadual Natalino Ferreira Mendes, localizada na região central do município, em uma escola cívico-militar.   
 
O estranhamento de minha parte não foi [e não é] gratuito. E me explico. Fico um pouco atordoado com o fato de que embora, minimamente ou aparentemente, haja uma certa compreensão, com algumas versões e adaptações, rodando por aí, de que a educação seja um espaço de possibilidades, emancipador e libertador,  as práticas, planos e projetos adotados historicamente caminham em um sentido completamente oposto, contribuindo muito mais para o aprofundamento do que nos aflige coletivamente. Seguimos fingindo que não vemos o real, ou tentando escondê-lo, ou buscando, ainda que com boas intenções, apagar incêndios, mas, nesse caso, sem nos questionarmos acerca de sua origem.
 
Sobre o real, que “fingimos não ver”, entendo que não há como desvincularmos a educação de outros desafios e enfrentamentos que ainda precisamos fazer, com muita seriedade e criticidade, no Brasil. Além de termos que nos perguntar, constantemente, como um mantra, “que educação nós queremos?”, e gastarmos mais um pouco de energia refletindo sobre as consequências e os efeitos das respostas que dermos a essa pergunta, é imprescindível que não isolemos essas discussões de outras.
 
Como discutir a educação sem discutir, as desigualdades que constituem a nossa sociedade? E sobre isso, ainda complemento, como discutir as desigualdades sociais, atribuindo a sua existência a um caso de merecimento, ou  à escolha do próprio sujeito? Como discutir a educação se boa parte dos estudantes de escolas públicas tem a merenda servida nas escolas como a sua principal fonte de alimentação diária? Como discutir a educação se os livros [didáticos, paradidáticos, literários, técnicos...] continuam a ser artigos de luxo? E ainda sobre esse ponto, como discutir a educação se os poucos livros distribuídos devem ser disputados por um turma de 30 a 40 estudantes, sendo impensável a hipótese de levá-los para casa? Como discutir a educação sem considerar políticas públicas de habitação, de saneamento básico e iluminação pública, de saúde e de assistência social? Como discutir a educação sem se atentar para a diversidade?
 
Lamentavelmente, as discussões vão ganhando outros contornos. De forma isolada, os problemas que encontramos no cotidiano das instituições públicas de ensino, ou os desdobramentos de outros problemas que ali recaem ou ali reverberam – com muita frequência, ora são colocados na conta do “método”, ora são colocados na conta da gestão.
 
Quanto ao método, aqueles que costumam bater exclusivamente nessa tecla, defendem que a solução [ou “a salvação”] seria, por um lado, empregar mais recursos tecnológicos em sala de aula, torná-la mais high tech, mais convidativa, de modo a atrair a atenção dos estudantes, dando a eles “mais espaço”, mais “autonomia”. Ocorre que os métodos são alterados, ou, pelo menos, alardeiam aos quatros cantos que são, mas a mesmice persiste. A forma é alterada, uma roupagem, adereços e acessórios diferentes são propagandeados e incorporados, mas apenas isso. Só isso mesmo que acontece, e quando acontece. Não há ruptura, ou um espaço para a criatividade, para o novo, de fato. Para a produção de sentidos outros. Para a construção de uma cidadania plural e diversa [como já me manifestei em tantos outros textos]. E, por outro lado, na mesma onda, defendem, que a solução seria a conversão do professor em um comunicador, um apresentador de auditório. Questionar para quê? O professor deve apenas transitar pelos conteúdos programados, e deles não sair. Seguir, obedientemente, uma receita de bolo, independentemente do espaço em que trabalha, independentemente dos estudantes com quem convive.
 
Quanto à gestão, aqueles que costumam bater exclusivamente nessa tecla, defendem que a solução se resumiria à administração. O receituário, aqui e ali, de forte tendência neoliberal, costuma ter pontos como estes: remanejar ou terceirizar servidores [dessa forma, precarizando o trabalho]; reduzir a carga horária ou extinguir aulas ou disciplinas voltadas para as artes;  fechar escolas; diminuir o repasse de verbas ou a realização de novos investimentos; aumentar a carga horária de trabalho [mas desconversando sobre uma compensação decente para isso]; criar obstáculos para a qualificação dos professores; cortar “gastos”.
 
Aproveitando a deixa, sobre o corte de gastos, eu fico sempre me perguntando: como cortar gastos  do que já é escasso? Como cortar gastos do que já é precário? Sendo bem sincero: fazer ou ser favorável a esses expedientes, é  torcer e colaborar para que nada floresça mesmo nos espaços educacionais. E eu acho que nós, às vezes, não nos perguntamos, também, por que nesses lugares, justo nas instituições públicas, a escassez e as precariedades são sentidas com mais intensidade. Seria um projeto, para que assim seja e assim permaneça?
 
Voltando ao episódio da Escola Estadual Presidente Médici, e fazendo um link com o que foi compartilhado acima, é possível observarmos que, mais uma vez, seguimos na contramão. E digo isso, não só pelo motivo de que as gestões pedagógica e administrativa das instituições públicas de ensino  devem ser feitas, de forma democrática, por quem está na ponta, por quem está trabalhando, pesquisando, desenvolvendo suas atividades, no chão da escola, ou no chão das universidades – e é claro, tendo condições materiais para tanto – mas, também, vale destacar,  pelo motivo de que posicionamentos e iniciativas como aquelas reforçam, validam e atualizam [com a chancela do próprio Estado], direta ou indiretamente, quer queira quer não, imaginários retrógrados e estereotipados, em circulação há muito tempo, sobre a educação, sobre os professores e sobre os estudantes.
 
Assim, segundo esses imaginários [repito: retrógrados e estereotipados], a educação é tomada como o lugar da disciplinarização, da “instrução”, da ordem, do controle dos corpos, da castração e da censura de reflexões da diferença, da pluralidade. E não como o lugar das possibilidades, da formação, da produção de conhecimento, das artes, enfim, um lugar de transformação. Os professores e os estudantes, nesse contexto, não conseguem escapar do roteiro [imposto de cima para baixo], são tomados como fiéis  repetidores do que aí já está. Inclusive, esses são os “bons professores” e “os bons estudantes”, aqueles que repetem, que não saem do script.
 
Esse círculo vicioso precisa ser rompido! A educação não é sinônimo de “disciplina”. Não serão as filas ou as marchas; os desfiles nas vias públicas em datas comemorativas; as continências aos superiores [hierárquicos]; o silêncio forçado pelas salas, corredores e pátios; a rigidez dos protocolos; o “patriotismo” de conveniência; a presença de um “comandante” no recinto [seja de onde vier, quem for e por meio de qual arranjo apareça]; uma direção menos consultiva e mais arbitrária; bem como os gritos de comando e de resposta, que trarão igualdade de oportunidades, que estimularão as genialidades.
 
Curioso que, aos estudantes de instituições públicas, sobretudo aqueles da Educação Básica, a disciplina é sempre lembrada como a primeira opção. O reforço da autoridade, o aumento da supervisão, da fiscalização e o rigor das regras são apresentados como o suprassumo de uma “direção de resultados”, “eficiente" – e isso dito e requentado por aí, sem qualquer comprovação científica, e, igualmente, sem maiores problematizações sobre o que seria uma “direção de resultados”, “eficiente” [que resultados seriam esses? A favor de quem? Eficiente para quem?]. Enquanto que, aos estudantes de outras instituições, sobretudo aquelas frequentadas pelas classes mais abastadas, o leque de opções é ampliado. Para estes, a cultura, a literatura, o teatro, o lazer, os esportes, os psicólogos, os terapeutas, as “aulas de reforço”, os grupos de estudos e pesquisa, os cursos de línguas, de música, os intercâmbios, as viagens, os passeios e as excursões são as alternativas e os complementos. Para os outros, a grande maioria, a disciplina, a partir da implementação de modelos desarrazoados, recheados de promessas milagrosas, que nunca se concretizarão.
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