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25/10/2020 - 10:13

Onde dói a fome

Talvez eu devesse simplificar esse assunto e fazer deste texto ou pensamento uma  afirmação conclusiva sem muitos rodeios até porque ela parece ser uma frase bem rasa, mas sua contextualização requer um pouco de ilustração para melhor compreensão dos fatos a que vou me referir dessa minha experiência de vida.

Eu já passei fome, essa frase é um pouco mais  forte, porém mais usual dado a situação social do nosso país e de grande parte do planeta terra.

Temos muitas histórias de fome e fome de tanta coisa, acredite,  no mundo de hoje tão conectado pujante em tecnologia, comunicação e inovação em produção de alimentos. Se fossemos criar um paragrafo neste texto para esmiuçar a indústria agrícola e demais congêneres daria muito assunto para debater ou complicar ainda mais o entendimento de como essa comida toda é tão mal  equacionada em sua distribuição .

Mas não é disso tudo que quero falar, o nosso assunto é tentar usar um pouco de humanidade, sentimento e realidade  para ter o pleno entendimento de onde exatamente dói a fome seja no sentido literal ou na mais profunda reflexão filosófica que o assunto requer, e não precisamos ir muito longe para se deparar com situações de profunda tristeza quando um ser humano não consegue ou não pode produzir seu próprio sustento alimentar.

Em 1989 após a separação dos meus pais e minha mãe saindo de nossa casa, muita coisa mudou num cenário que ja era triste e passou a ser cada dia pior , mas não vou entrar em detalhes , até porque já é uma outra história que conto numa próxima oportunidade. Bom acontece que eu entao com apenas 13 p  14 anos de idade me vi morando sozinho em uma casa onde éramos 9 irmãos, eu como filho caçula ou herdeiro desse trono ja que nosso  irmãozinho nos deixou com apenas 2 aninhos de idade, aconteceu comigo um fenômeno digno de cena do filme hollywoodiano  "esqueceram de mim". Nesse período então  os meus irmãos mais velhos foram casando indo embora e quando finalmente ficamos eu e meu velho pai na velha casa de madeira, um de meus irmãos que ja morava em SP , levou meu pai para ficar uma temporada na capital  paulista e ninguém (sem qualquer mágoa) se tocou , lembrou ou atentou-se que eu era apenas uma criança e que iria ficar sozinho.

O sentimento de solidão que se habitou em mim não foi o bastante para me abater mas misturado a isso tudo uma aura de abandono também me perseguiu, sempre tive muitos amigos mas essas coisas todas somadas a inexperiência da idade e a falta de perspectiva de futuro , e  enquanto isso tudo não acontecia, muita nescessidade básica,  como da alimentação me aconteceu.

 Eu sempre trabalhei, meu primeiro emprego aos 10 anos de idade foi meio periodo apos as aulas em uma bicicletaria, onde aprendi fazer manutenção em bicicletas, em seguida tambem fui trabalhar na Garaparia do Seu Miguel, uma boa e primeira experiencia com empreendedorismo, isso ja com 12 anos, com o dinheiro que ganhava paguei alguns cursinhos por correspondência no conhecido Instituto Universal Brasileiro, dentre os cursos, desenho artistico, desenho de propaganda, desenho de decoração de interior, gramática aplicada a publicidade, ciencia das cores, ( da luz a luz inexistente) quiromancia ( isso mesmo) dentre outras leituras que apreciava nesse periodo como a coleção Vagalume da Ediouro, Almanaque do pensamento da Editora Abril que colecionei por longos anos e ainda assuntos relacionados a politica como o livro “O poder das ideias"  de Carlos Lacerda, religiosidade e espiritismo entre Jesus e Kardec alem de obras adversas . Boas leituras me fizeram manter no caminho de quem eu queria ser na minha autoformaçao de cidadão.

Meu pai nao tinha renda, não tinha emprego ou benefício até então,  vivemos tambem um longo periodo de pequenos trabalhos que eu realizava como desenhista gráfico, acontece que como hoje ainda neste país um autônomo tem seus dias dificeis e embora eu sempre acordasse muito cedo para correr atrás de trabalho nem sempre era possível arrumar alguma coisa, e lembrando que o Brasil vivia a triste época de altissima inflação , instabilidade econômico com efeitos trágicos que acredito nunca mais viver.

Numa dessas aventuranças em busca de trabalho fui a cidade vizinha de Mirassol D'Oeste indicado por um amigo e la fiz alguns contatos de trabalho de modo que ampliava minhas expectativas financeiras que timidamente mantinham a mim e a meu velho pai.

Meu primo Carlinhos Viana,  hoje renomado artista plástico matogrossensse, certa vez convidou-me para morar na capital Cuiabá onde residiam para estudar, ele e outros primos em um pequeno apartamento , oferecendo a mim então uma oportunidade de novos horizontes nesse cenário.  Nesse ano que fiquei em Cuiabá foi um grande aprendizado para mim, amadurecimento e muita reflexão sobre futuro. Minha volta para Cáceres se deu quando, em um desses fim de semana que as vezes eu pegava carona no trevo do lagarto para visitar minha terra, encontrei meu pai sozinho em casa e com muita febre, como ele ja estava com idade bastante avançada resolvi juntar minha mala, meus discos de rock nacional e voltar a Cacere para entao cuidar do velho.

Nesse retorno , fiquei algumas semanas  sem trabalho, imaginem, se meu pai não tinha renda alguma, eu sem trabalho,  as coisas nao ficaram boas, e por alguns dias dormíamos sem qualquer refeição. Certa vez um amigo que tinha uma lanchonete me ofereceu uma sobra de salgados de sua vitrine ( como se adivinhasse) para que eu levasse p casa, nessa noite dormimos alimentados e felizes. O dia seguinte era outra batalha, e quanto de fato percebi que o que me incomodava não era a fome biológica, mas a dor no peito da impotência,  a certeza de que não ia comer novamente, sensação de que eu não era capaz de prover minha própria sobrevivência  ou ainda um sentimento de inutilidade existencial, a responsabilidade para com o velho pai,  minha cabeça fervilhava informação e percepção da vida sobre todos os aspectos mas na prática eu me sentia inútil.  Nunca chorei sobre esse fato, alias , não pretendo esquecer, esse sentimento,  essa lembrança tem efeitos fantásticos para que eu nunca me esqueça de quem sou, de como  tive de lutar por quem eu queria ser, tive de provar o meu valor e pra mim mesmo primeiramente.

Não compartilho esta historia para provar nada a ninguém,  é apenas minha historia e de como um certo sofrimento pode ser impacto positivo quando sabemos usar como aprendizado,  ensinamento de valor imensurável do ponto de vista de como lidamos com as diferenças e dificuldades de cada ser humano. Hoje eu tenho fome, tenho fome de justiça social, de política estratégicas que geram oportunidades, tenho fome de trabalho que transforma realidades em esperança,  tenho fome da construção de uma cidade que prepare e ampara seus jovens com dignidade, tenho fome de tudo que seja bom e prospero, que todos tenham vida plena de sonhos e realizações.
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