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13/10/2020 - 08:25

Meu amigo virou uma empresa: “uma biografia de sucesso”

[PRIMEIRO ATO]
 
Parte I: A origem
 
Tentei contra-argumentar, explicando, ou tentando explicar, quais seriam os destemperos deste seu novo projeto, mas ele não me fez caso. Estava decidido, queria virar um empresário de si mesmo. Ou melhor, queria virar uma empresa. Desde então, a fim de alcançar esse objetivo, adotou uma filosofia um tanto exótica, reorganizou sua rotina e suas atividades, revisou o modo como se relacionava com as pessoas e com ele mesmo, e passou a investir, exclusivamente, em si. Ele era seu próprio capital, seu próprio bem econômico, e, por isso, não podia perder tempo, tinha que estar no gás, na pressa, sem parada ou paradeiro, sem fixar raízes, seguia o fluxo, correndo, sempre correndo.
 
Para ele, já sob a influência – ou sob o governo – daquelas ideias que começou a chamar de suas, como tudo acontecia muito rápido, e, num estalar de dedos, a sua posição na disputa pelo sucesso poderia ser alterada, passou, então, a mover-se por ranqueamentos, scores, previsões, índices, estatísticas, projeções, número de seguidores, curtidas, publicações, stories e engajamento nas redes sociais. Passou a mover-se, também, por um filtro, incorporado às suas práticas, que o fazia olhar para si [especialmente], para seus amigos, familiares e para a cidade em que morava, segundo uma relação, bem calculada, de custo-benefício. O que não lhe proporcionava alcançar suas metas, era descartado. Os sentimentos que de vez em quando brotavam, escapando do seu controle, rapidamente eram domados, ou, quando viáveis para a ocasião, logo eram capitalizados. Na minha opinião, mais do que sob pressão, ele vivia sob constante ameaça [causada: ou a partir do que ele mesmo criava; ou a partir do que ele permitia que criassem em sua cabeça], muito longe, portanto, da liberdade que ele venerava e dizia possuir. 
 
Parte II – A conversão
 
De acordo com as orientações de seu personal para assuntos da mente – uma espécie de mentor particular, que ele havia contratado para lhe dar conselhos – ele tinha que: [conselho n. 1], sem maiores reflexões, análises ou autoanálises, manter-se de cabeça erguida, sorrindo, independentemente das experiências cotidianas, se boas ou ruins, fazendo dos limões que aparecessem em seu caminho uma limonada; [conselho n. 2] ter fé,  permanecer focado em seus planos e  estimular, diariamente, o seu sonho de ser um vencedor; [conselho n. 3] ficar vigilante a tudo [e a todos] a sua volta, sempre se desafiar para mais, mais e mais, e nunca desanimar, porque o desânimo, era um estado físico e mental dos perdedores, dos derrotados, de quem fica se fazendo de vítima para não seguir adiante.
 
“Ééé! O tal personal não dormia no ponto”. Depois de socializar comigo alguns daqueles conselhos, sem qualquer constrangimento ou pudor, vi que a sua conversão andava a passos largos, apurada. Eu não concordava com nada daquilo e continuo não concordando. Se devemos “fazer dos limões uma limonada” eu não sei, pode até ser que resulte em alguma coisa boa, quem sabe, não é mesmo? Mas, necessariamente, fazer isso se jogando dentro do próprio liquidificador, junto com os limões, é algo perverso.
 
Não satisfeito com os conselhos do seu “guru de plantão”, de forma complementar, pilhado, passou a maratonar séries e playlists de vídeos que encontrava pelo YouTube, e outras tantas que encontrava pelas redes sociais e pelos grupos de WhatsApp. Os seus temas preferidos eram: finanças, gestão de negócios, empreendedorismo, marketing digital e fotografia. Via e revia tudo que encontrava sobre esses assuntos. Depois de ter “zerado os algoritmos”, após madrugadas e madrugadas a fio, consumindo todas as sugestões que surgiam, eis que uma novidade apareceu diante de seus olhos: o “quântico”, achado que lhe proporcionou uma “tempestade de ideias” [um brainstorming, como ele gostava de dizer], sobre o modo como começaria a administrar seus futuros empreendimentos.
 
Mas, “pera lá”, antes de continuar com essa história de “tempestade de ideias”, eu também preciso contar, ou melhor, desabafar, que conversar com ele começou a ficar muito difícil. Nossa! Ele falava e eu ficava boiando. Para cada palavra em português que dizia, ele tirava da manga duas ou mais em inglês [mindset, feedback, background, business plan...]. E falava com pose, com cara de entendido, fazendo charme. Pronunciava as palavras com a boca cheia e o peito estufado, mostrando um certo orgulho da maneira como conseguia “estrangeirizar” o papo, embora eu tivesse minhas dúvidas se ele realmente entendia aquele vocabulário todo. Ah! E além das palavras em outro idioma, a forma como ele mexia as mãos enquanto falava cada uma delas, era um show à parte. Quem conversava com ele, assim de pertinho, podia ver de camarote a performance, ou, no mínimo, ficava tonto tentando acompanhar cada um de seus gestos. Eu, particularmente, evitava prestar muita atenção, até por restrições médicas: labirintite é fogo, né?
 
Voltando ao brainstorming [a tal “tempestade...”]. Não contente com suas tradicionais maratonas de vídeos no YouTube sobre isso e aquilo, e os conselhos de seu personal, após ter descoberto, então, o “mundo quântico”, desembestou a relacionar tudo o que já tinha visto e, supostamente, aprendido, com a novidade, ainda que essa relação correspondesse apenas ao mero acréscimo de uma palavrinha [“quântico”] ao que já existia, nada muito original. Foi assim que nas rodas de conversas, ele não tagarelava mais só sobre finanças. Agora a vibe era outra: “finanças quânticas”, que tal? Para ele, essa casadinha, com características e particularidades próprias, conforme exaltava, promoveria uma revolução no mercado [Ahhh, o mercado! Sempre onisciente e onipresente em seus argumentos].
 
Sabe a gestão de negócios? Pois é! Na avaliação dele, deixou de ser aquela básica, que se preocupava com a lei da oferta e da procura, com a logística de distribuição, com a colocação de novos produtos em circulação e com a publicidade [...]. Agora, o que estava valendo, era a “gestão quântica de negócios". Sim, um novo conceito de administração, uma nova tendência a ser incorporada. Se ele mesmo era a própria empresa, então, o seu corpo, suas emoções e sentimentos deveriam ser alvos de suas preocupações empresariais, ou, em outros termos, deveriam se submeter a uma lógica empresarial. Nesse sentido, seu corpo, emoções e sentimentos foram sendo convertidos em um meio, uma máquina, que, de preferência, fosse disciplinada, comprometida com a produção e não apresentasse falhas.
 
Ainda sobre o “mundo quântico”, confesso que desde a primeira vez que ouvi a respeito, me esforcei para entender. Com sinceridade, me esforcei muito para entender. Depois de um tempo ouvindo, tentando digerir todo aquele papo – o do quântico, comentado acima, mas os anteriores também –  percebi que o que escutava, ou melhor, que o que era “vendido” e “anunciado" como novo, inovador, como remédio e solução para os mais diversos problemas, na verdade, era decadente, era mais do mesmo, requentado, e eu acho que piorado. Havia muito de velho naquele “novo”.
 
E havia, eu me explico: primeiro, porque era uma conversa [-fiada] que só servia para manter tudo do mesmo jeito, sem qualquer ruptura: cada um no seu quadrado, sem muita mobilidade e interação, cada um olhando para si mesmo, para os seus  interesses, como se para fora de si não existissem pessoas de carne e osso [ou como se ele mesmo, o meu próprio amigo, não fosse de carne e osso]; segundo, porque aquele conjunto de orientações [somando as do Guru e as dos vídeos...] não fazia sentido para a maioria da população, malemá fazia sentido para um grupo mais restrito, que já partia de um lugar, digamos, mais privilegiado; e terceiro, “havia muito de velho naquele novo”, porque, mesmo prometendo liberdade, entre outras vantagens, para quem seguisse à risca aquele conjunto de orientações, na prática, tudo aquilo só servia para engessar ainda mais as pessoas, trancafiá-las numa ilusão de autonomia, enjaulá-las sob o julgo de uma lista interminável de representações idealizadas de si mesmas, do outro e do espaço que ocupavam. Escuta só: quer prisão mais eficiente que essa? Mais sutil? Estar preso, mas se sentindo livre? Pensando que é absolutamente dono de suas vontades e, por isso, é capaz de conseguir tudo o que quiser, bastando, para tanto, apenas querer. Coisa de gênio, não é mesmo? Gênio do mal.
 
[CONTINUA]
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