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20/07/2020 - 10:20

As muitas 'ditaduras' de Vila Maria

Os últimos dias têm sido de muita insegurança jurídica com a edição de dois decretos do executivo municipal e um decreto legislativo além de três decisões judiciais, duas delas em mandados de segurança e uma em sede de suspensão de liminar, tudo isso sobre o mesmo assunto da proibição do consumo e comércio de bebidas alcoólicas na circunscrição territorial do município de Cáceres.
 
No primeiro decreto o prefeito Francis Maris, no uso da reserva de poder normativo do poder executivo municipal de poder editar normas regulamentares da Lei Federal nº 13.979/2020 que estabeleceu o estado de calamidade pública no país decorrente da pandemia do coronavírus, ele editou, no art. 7º do decreto nº 370/2020, uma proibição temporária do comércio e consumo de bebidas alcoólicas, continuando e estendendo as normas regulamentares que iniciou a partir do decreto regulamentar  nº 120/2020, mandou retirar das prateleiras tais produtos, vedou inclusive o retalho de vendas por meios digitais, incluindo os serviços de entrega domiciliar feito através de aplicativos de redes sociais ou de aparelhos celulares inteligentes.
 
O importante de destacar na medida do executivo municipal é que é um decreto regulamentar de norma federal, que não é um decreto autônomo, até porque tal vedação não é da competência exclusiva do legislativo federal, uma competência da União, ele somente pode editar a norma proibitiva porque está autorizado a regulamentar a lei federal do estado de calamidade pública. A Lei Orgânica Municipal trata especificamente da competência suplementar no art. 8º, caput.
 
Tanto está autorizado a fazer isso que o Supremo Tribunal Federal declarou constitucional na ADPF 672, proposta pelo Conselho Federal da OAB contra atos omissivos do governo no controle da pandemia, julgada em 8 de abril de 2020, que os prefeitos e governadores tomem medidas de controle da pandemia no âmbito territorial de seus Municípios e seus Estados.
 
A Câmara Municipal, muito provavelmente influenciada pelo lobby dos comerciantes de bebidas alcoólicas, considerou a medida excessiva, abusiva e ilegal e no uso do controle político que exerce sobre o executivo municipal usou de sua competência normativa pré editar decreto legislativo sustando os efeitos do dispositivo de proibição de consumo e comércio de bebidas alcoólicas do prefeito Francis Mares.
 
Até aqui vai quase tudo bem, a proibição não é absurda como alguns acreditam porque o decreto regulamentar do executivo municipal pega carona na competência dos deputados federais de proibirem o comércio e o uso de qualquer substância (drogas, medicamentos, alimentos) se existirem fundadas razões e motivos pra proibir qualquer uma delas. Aliás, como faz em profundidade através da Lei Federal nº 11.343/2006 que proíbe o uso e o tráfico de substâncias entorpecentes. Então não procede o argumento de que o executivo municipal não possa proibir bebidas porque ele não tem autoridade pra isso, ele está usando emprestada uma autoridade maior, na forma de um decreto regulamentar.
 
Também vai tudo bem, em parte, quando os vereadores resolvem atender o lobby pelo livre comércio de bebidas alcoólicas. Porque é função do legislativo municipal fiscalizar os atos do executivo municipal. A Câmara funciona como controle político e também como controle de legalidade dos atos do prefeito municipal. Outra coisa bem diferente, são os controles político e de legalidade dos atos dos deputados federais e do Supremo Tribunal Federal. A Câmara não tem poderes e tampouco competências pra fiscalizar e controlar politicamente os atos do Congresso Nacional e tampouco pode se insurgir contra as decisões da Corte Constitucional. Mas ela fez isso ao editar o decreto legislativo que sustou a proibição do comércio e consumo de bebidas alcoólicas. Ela atacou o regulamento de uma lei federal e afrontou uma decisão do Supremo.
 
Nossa sociedade felizmente é plural e não existe apenas o lobby a favor do livre comércio de bebidas alcoólicas, há setores dela, também bastante significativos, que concordam com a moratória do comércio e consumo de bebidas, porque entendem que o livre comércio afrouxa o distanciamento social e prejudica o controle da pandemia.
 
Desse ponto em diante, as coisas degringolam. No afã de afastar o ato dos vereadores o executivo reeditou, de forma autônoma, não mais pela via do regulamento, a proibição do comércio e consumo de bebidas alcoólicas, com o objetivo exclusivo, de retirar a eficácia jurídica, (validade, vigência) do decreto legislativo. Acontece que o prefeito pode proibir o consumo e comércio de bebidas alcoólicas usando emprestada a competência dos deputados federais de fazer lei sobre isso, sozinho, de forma autônoma ele está proibido de fazer isso.
 
No meio das idas e vindas da proibição do comércio e consumo de bebidas alcoólicas iniciou-se uma batalha judicial entre os órgãos responsáveis pelo controle da pandemia de coronavírus e o lobby do livre comércio de bebidas alcoólicas. Um primeiro mandado de segurança impetrado por alguns comerciantes do referido lobby conseguiu suspender por 48 horas os efeitos do primeiro decreto proibitivo até que o executivo municipal apresentasse estudo que justificasse a adoção do regulamento draconiano da norma federal de controle da pandemia. O poder público municipal, irresignado com a decisão acionou a PGM que pediu ao Tribunal de Justiça a suspensão de liminar, desobrigando o Município da apresentação de tal estudo. O Tribunal concedeu a suspensão de liminar.
 
Mais uma vez, apesar da inseguranças jurídica, porque entre todo esse vai-e-vem ninguém em sã consciência pode garantir que esteja proibido ou haja livre comércio de bebidas na cidade de Cáceres no dia em que necessite manifestar essa opinião, tudo vinha mais ou menos bem e normal até que surge um novo mandado de segurança contra o decreto legislativo da Câmara de Vereadores que reafirma o livre comércio de bebidas alcoólicas. A Justiça concedeu a ordem, deu à liminar do pedido que suspende o decreto dos vereadores.
 
É um mandado de segurança individual contra um ato de um dos poderes públicos do Município, isso abre um perigoso precedente segundo o qual, qualquer pessoa que não gostar de uma decisão dos vereadores de Cáceres possa entrar na Justiça pra discutir e até revogar qualquer lei municipal que eles aprovem.
 
Essa disputa não é a única e nem a primeira que envolve o executivo e o legislativo municipal no regulamento de controle da pandemia de coronavírus, ainda em 27 de abril de 2020 os vereadores revogaram disposição do decreto nº 196/2020 do prefeito municipal que estabelecia multa aos estabelecimentos comerciais onde clientes fossem encontrados sem usar máscaras.
 
No fundo do vai-e-vem político e judicial a questão parece decidida e o controle da pandemia aparenta ter precedência sobre os interesses mais ou menos específicos contra as normas desse controle e - quanto maior a pressão destes interesses contra o controle da doença; maiores serão os entraves para obter uma modificação dos regulamentos e mais irão se esgotando os meios e recursos lícitos pra promover essa modificação.
 
Na verdade enquanto poder de editar normas, leis e decretos a Câmara de Vereadores pode muito mais que o prefeito Francis Maris, que só pode atuar nos limites da regulamentação da Lei Federal nº 13.979/2020 e do seu próprio decreto nº 120/2020. Nada que o Francis Maris dite como regra pode ofender esses dois dispositivos normativos. Ja os limites dos vereadores nascem por exclusão de competências previstas nas Constituições Federal e Estadual e vem estabelecidos na Lei Orgânica do Município. Quem se dedicar a elas vai perceber que algumas são excludente umas das outras e outras são concorrentes entre si.
 
O judiciário fala do lugar de quem tem a última palavra no conflito de interesses entre os que defendem o livre comércio e os que apoiam a moratória proibitória de comércio e consumo de bebidas alcoólicas. Do ponto de vista específico da necessidade de medidas de contenção e controle da epidemia o judiciário já se manifestou impondo uma medida cautelar de obrigação de fazer estabelecendo um lockdown simultâneo em Cáceres e mais 22 municípios da região por ordem da Justiça Federal. A decisão foi derrubada no TRF1 por recurso de um dos municípios atingidos. Como a decisão da Justiça Federal era uma de primeira palavra, medida cautelar, a cassação dela no Tribunal da 1ª Região apenas reforça o lugar de última palavra do judiciário sem dizer nada sobre o mérito da questão.
 
A política deveria ser sempre orientada por um espírito pragmático, objetivo, de consecução de um resultado ou meta projetado, embasada em cálculo moral utilitarista, o melhor sempre o que é o melhor para o conjunto total da população no mais breve espaço de tempo possível, no caso da pandemia de coronavírus, o melhor para todos no mais breve tempo possível é a redução do número de contágios ou casos novos confirmados da doença no menor espaço de tempo possível, não existe um número absoluto de casos e nem uma medida de tempo específica, apenas isso, menos casos, logo que der. Todos deveriam contribuir com isso, coletiva e individualmente.
 
Numa pesquisa rápida encontrei as seguintes normas regulamentares da Lei Federal nº 13.979/2020:
 
Talvez seja uma atividade legiferante compatível com a emergência de uma pandemia, por outro lado talvez haja um excesso normatizador do executivo municipal que decorra de uma ausência de claridade de objetivos no controle da disseminação do SARS-CoV-2 e controle da epidemia de COVID-19.
 
No quadro da realidade epidêmica os números não recedem, pelo contrário, eles aumentam como as labaredas de um incêndio invisível, que aproxima nossa sociedade a uma tragédia inenarrável e que sempre foi evitável, com a alocação dos melhores recursos dela no combate a essa ameaça.
 
Se a cada norma regulamentar decretada a sociedade se divide entre favoráveis e contrários à medida segundo suas convictos ideológicas, vindicando mundos ideais de liberdade ou de igualdade uns contra os outros, nós perdemos o sentido prático e pragmático da solução de um problema comum que afeta igualmente a todos (é bom lembrar sempre, com espírito cristão, que a pandemia atinge com mais gravidade os mais pobres), nos afastando do dever moral do cálculo utilitarista de que o melhor pra todos deve ser conseguido no tempo mais breve possível.
 
A democracia é o valor mais alto e mais caro desse processo, deve ser protegida a todo custo, inclusive o de uma pandemia. Ainda que o foco urgente do momento em que vivemos esteja a exigir de nós mesmos, de nossos líderes e da sociedade como um todo a debelação do incêndio epidêmico, princípios e valores democráticos precisam ser obedecidos à risca, independentemente das ideologias e partidos que nos dividem em grupos diferentes desta sociedade. O populismo é um inimigo tão poderoso quanto o vírus que enfrentamos.
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