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19/07/2020 - 10:10

Diário: Pedalada Existencial em Vila Rica

"Não quero mais da vida do que senti-la a perder-se nestas tardes imprevistas, ao som de crianças alheias que brincam nestes jardins engradados pela melancolia das ruas que os cercam, e copados, para além dos ramos altos das árvores, pelo céu velho onde as estrelas recomeçam.” (Livro do Desassossego por Bernardo Soares.Vol.I. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1982.   - 186.

Gostava muito de poder ressuscitar os hábitos mortos. As meninas e meninos que não cresceram, bem... Queria eu poder matar, ainda que brevemente, a razão do crescimento. De alguns quintais, libertar aquelas crianças, alforriá-las dos jugos dos portões, da canga daquelas grades lindeiras pontiagudas, que agora investem e rasgam a carne de quem se atreve a buscar a bola vadia que espirrou no quintal vizinho.

Não sei, devem ter sido as pedaladas da bicicleta que eu montava, a quem apelidei de “Rocinante”, que me serviram de gatilho para ser repentinamente apanhado por uma sensação de saudade idealizada, uma coisa como um desejo sentimental de regresso.

Regresso à eternidade. Regresso ao descomprometimento. À irresponsabilidade. Às inconsequências. Ao dia despreocupado e preguiçoso, que se repetia como infância, que insistia desavisado em tomar forma de semana, de mês e de ano, com um cheirinho úmido de amaciante das roupas estendidas no varal, com aquela réstia de sol matutino que chegava à minha cama, cravejada de sombras móveis projetadas pelas folhas do ingazeiro que balançavam naquele vento despretensioso da manhã.

Em certo momento, sou tomado por uma revolta. De algumas dessas velhas ruas, queria poder arrancar aquele asfalto, cavando nelas aquelas antigas bacias, nas quais há muito me enlameei, devolvendo a elas sua jurada e inevitável imperfeição, o entalhe açoitado pelas intempéries e alguns pneus pesados de caminhões, onde a água escorria livre, sem um destino ladrão de onde hoje vertem um cheiro ruim e algumas desorientadas baratas, por onde desemboca agora a enxurrada seguindo um caminho previsível, triste e rascunhado pelo reto meio-fio.

Pedalo em uma ode às velhas ruas desta cidade, aquelas importantes para mim, os velhos becos e caminhos em geral, como minhas memórias, ontem de terra e hoje encobertas, quase todas, pelo asfalto.

Desde que estou aqui, em Vila Rica, nesses momentos de ócio, graças a essa doença sem graça que paira sem rosto por aí, e, à pecha de uma máscara, insiste em matar velhinhos e gente que já tinha muito com o que se preocupar, tenho tentado creditar mais importância, sim, ao que sinto, e tentando me esquecer um pouco de pensar, tudo sob esse "céu velho onde as estrelas recomeçam".
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