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06/07/2020 - 08:54

‘Em terra de cego, nem quem tem um olho é rei’

Já vemos no horizonte possíveis datas para as próximas eleições. Parece-me que em novembro próximo poderemos exercer o nosso direito ao voto para a escolha de prefeitos e vereadores. Considerando esse contexto de expectativas em relação ao futuro e de uma certa atmosfera de ansiedade pairando no ar, fiquei matutando [mais uma vez] sobre a formação de nossas cidadanias. Para muitos, talvez, este seja um tema já batido, requentado [por demais], que não mereceria mais espaço, mais holofotes, em razão de sua “obviedade”. Discordo. Entendo que há temas que carecem de um cuidado sensível e constante, até porque, nada do que parece ser óbvio de fato é, nada é transparente, percebido por todos da mesma forma. Há temas que precisamos, a todo momento, revisitar. Revisitar para seguir adiante, para ladrilhar outros caminhos, para que o absurdo cesse ou para que não se repita [novamente e novamente...]. Há temas que clamam que lutemos por eles.
 
No intuito de contribuir para a formação de nossas cidadanias – ou para o seu amadurecimento – penso que poderíamos iniciar a discussão desmistificando os boatos que correm soltos por aí de que nossos direitos, seja de qual “natureza” for, política, civil, social, econômica, cultural ou ambiental, consistem em presentes, ou em privilégios, dados por alguém benevolente. Os direitos são frutos das lutas populares, de movimentos organizados ou não, que, experimentando sacrifícios de toda sorte, demandam por ações concretas. Nem sempre, é claro, que os resultados das mobilizações são satisfatórios, mas, sendo positivos ou não – ainda que eu, acredite que, mesmo não obtendo um resultado “positivo” imediato, as mobilizações costumam deixar suas marcas, abrindo um pouco mais as frestas para a entrada do sol –  o que quero registrar é que as lutas não podem ser silenciadas, posto que esse tipo de silenciamento [a partir de uma quase frequente conversa fiada de que os nossos direitos são presentes...] acaba por alimentar um imaginário de que o que temos [ou o pouco que ainda nos resta], nos foi dado de bandeja, sem qualquer dificuldade enfrentada, e, principalmente, sem qualquer participação. Instala-se, assim,  uma leitura de que as nossas cidadanias não necessitam de nós, de nossas energias, de nossos questionamentos, de nossas vozes em prol da melhoria e da universalização dos serviços públicos. Instala-se uma leitura de que as nossas cidadanias vieram dos céus, e da mesma forma que vieram, de cima para baixo, podem, com facilidade, serem suprimidas, tomadas de nós.
 
Ainda quanto à formação de nossas cidadanias, outro ponto a ser problematizado diz respeito à qualidade de nossa relação com a democracia. Gastar um tempinho com essa questão faz muito sentido, porque cidadania e democracia devem caminhar juntas, apoiando e significando uma a outra, sem cessar, tendo em vista que é somente em um cenário de “normalidade democrática” que nós, cidadãos e cidadãs, minimamente, teremos chances e oportunidades para levarmos adiante algum tipo de agenda reivindicatória.
 
Quando vinculo o processo de formação de nossas cidadanias à qualidade de nossa relação com a democracia, não estou me referindo diretamente ao exercício do direito ao voto. Para nos tornarmos cidadãos, não basta votarmos ocasionalmente. Votar, de tempos em tempos, consiste sim em uma prática democrática, válida e necessária, diga-se de passagem, contudo, precisamos de mais, muito mais. O livre exercício do direito ao voto não pode ser o único critério a pautar a qualidade de nossa relação com a democracia. Para antes e para depois do voto, há muito a se fazer.
 
Aproveitando o gancho, para antes do voto, entendo que não podemos permitir que nossas dúvidas e curiosidades sobre as propostas, planos e eventuais metas apresentadas e distribuídas a granel, em um discurso ou outro, em um vídeo ou outro, fiquem ao relento, tomando sereno; não podemos permitir que nossos reclames coletivos [sim, coletivos, de todos e para todos] fiquem embargados em nossas gargantas, fazendo volume ou pesando sobre as nossas cacundas. Devemos cobrar esclarecimentos, brigar pelos detalhes e pelos pormenores daquilo que é dito, recusando-nos a aceitar frases prontas, delírios e um palavreado mesquinho e odioso – dizer que vai melhorar isto ou aquilo, mas sem especificar, tim tim por tim tim: “como?”, “quando?”, “quais serão os impactos?” e “quais recursos serão necessários?”, é oba-oba, é fazer piada de nossas angústias. Todo esse cuidado nos auxilia, não só para que não assinemos cheques em branco, mas para que, no futuro, tenhamos margem e força política para exigir que se cumpram as promessas. E, para depois do voto, entendo que precisamos fazer um acompanhamento crítico daqueles que foram eleitos, independentemente de terem recebido ou não o nosso voto de confiança. A fiscalização dos atos [públicos], realizados, ou por nossos representantes políticos, ou por algum membro de sua equipe, é tarefa a ser feita com o mesmo gás e a mesma disposição dos tempos do pleito eleitoral. Tratar com indiferença o que acontece na administração da coisa pública, lavar as mãos ou, simplesmente, dar de ombros, uma vez ou outra, só porque quem está ocupando o poder não é do nosso agrado, tampouco de nossa simpatia, é deixar os nossos destinos à mercê da própria sorte, é apostar constantemente no risco, no que é incerto, inseguro. Da mesma forma, tratar com condescendência o que acontece na administração da coisa pública, dispensando qualquer criticidade [ou a empregando apenas quando for conveniente],  minimizando erros, relativizando tragédias, tentando justificar o grotesco, é colaborar para o desastre, é aprofundar ainda mais as mazelas que afligem uma grande parcela da população brasileira. Acompanharmos, propormos, protestarmos, discordarmos, expormos e refletirmos, são ações a serem renovadas e reiteradas por todos nós, antes e depois das eleições.
 
E, no embalo, digo mais. Com vistas a aprimorarmos a qualidade de nossa relação com a democracia e, consequentemente, contribuirmos para a formação de nossas cidadanias, não devemos nos contentar com pouco, não devemos nos nivelar por baixo, o “menos pior” – expressão corriqueira que surge quando estamos diante da necessidade de fazermos alguma escolha – não existe. A disputa que devemos nos fixar [e avaliar] é a das ideias, porque, hipoteticamente, ainda que o alvo de nossas simpatias seja “o menos pior", segundo a crença de que essa categoria de representantes políticos exista [o que eu não acredito], não podemos nos esquecer de que ele carrega consigo alguma bandeira, que ele defende e está comprometido com alguma causa ou com algum interesse, que ele não  está concorrendo a uma vaga eletiva de forma avulsa, e, quando estiver a frente do cargo para o qual for eleito, colocará em prática sua respectiva agenda [para o social, para a educação, para a saúde, para a cultura, para a economia e etc.]. Logo, para além do “menos pior", ou para além de qualquer outro que estiver na corrida eleitoral, nossas inteligências devem se voltar para o que está sendo dito [e até para o que não está sendo dito, mas que, de alguma maneira, está ressoando]; enfim, nossas inteligências devem se voltar para a concretude, para o crível, para o humano.
 
Sobre a dinâmica do “menos pior", não à toa, costumo compartilhar, em uma conversa ou outra com amigos, a tese [informal] de que em terra de cego, nem quem tem um olho é rei. Isso, porque todos perecem, sucumbem, não há escapatória. Muitos por quererem, ou por comodidade, ou por teimosia, permanecer na escuridão; e muitos outros – aqueles que de vez em quando aparecem com um olho “sadio” – por quererem dominar ou colonizar aqueles que julgam ser subalternos, inferiores. Todos caminham iludidos, segundo seus devaneios, sem rumo, guerreando entre si, atacando e negando a si mesmos e aos próprios companheiros de jornada.
 
Prosseguindo, outro ponto que merece atenção, quando estamos investindo nossas energias nas discussões sobre a formação de nossas cidadanias, diz respeito à diversidade. Pergunto: como restringir ou limitar a formação de nossas cidadanias a um modelo especifico de ser e existir no mundo? Como militar por direitos, ou por mais democracia, se o que vemos, ou, se o que queremos ver, ao nosso redor, é apenas a nossa imagem e semelhança? Devemos romper com os egoísmos de nossos olhares e de nossas escutas, que, ao contrário do que imaginam, não nos prestigiam em nada, não nos valorizam, acabam por nos diminuir –  diminuir nossos sentidos e percepções, nossas reivindicações e posicionamentos – porque somente nos possibilitam ver o cotidiano de uma forma muita estreita, de uma forma que despreza o outro.
 
Como já me manifestei em alguns textos passados, para fora de nós, para fora de nossas fronteiras e muros – muitas vezes erguidos para que não vejamos o que há do outro lado, ou para nos afastarmos do que supostamente [isso mesmo, supostamente] pode vir a ser uma “ameaça” – está o outro, o diferente, que fala muito sobre nós, que nos significa, e que, também, deve ter a sua existência em direitos e em dignidades materializada, vivida, saboreada, para além das conveniências, dos preconceitos, dos estereótipos, dos racismos e dos racistas de plantão, e, especialmente, para além da ignorância.  O outro – que é tão cidadão quanto nós somos, é sempre bom relembrar – não pode ter a sua cidadania negada, como costuma acontecer, e com pesar digo isso, por, simplesmente, ser quem é, por não se adequar aos padrões dominantes [estabelecidos e impostos, com muita sutileza, inclusive]. Da mesma forma, o outro, a depender de sua condição, de seu modo de vida, dos traços de sua cultura, não pode ter a sua cidadania folclorizada, isto é, não pode ter a sua cidadania convertida em um mero produto, uma moeda de troca, a ser lembrada e usada, tão somente, quando houver alguma necessidade comercial ou de entretenimento. Não podemos nos esquecer de que é a diversidade que amplia nossos horizontes, que nos inquieta a refletir sobre alternativas, sobre projetos para o país cujo fundamento é a promoção de justiça social. E, igualmente, não podemos nos esquecer de que é a diversidade que oxigena nossos pensamentos, colocando-nos a um passo [ou a muitos passos] a frente da mesmice.
 
Sigamos assim, preocupando-nos [e nos incomodando] com a formação de nossas cidadanias. As transformações que tanto desejamos não cairão do céu, ou ocorrerão, como em um passe de mágica, a partir de meia dúzia de palavras desconexas proferidas ao vento desde um palanque ou desde uma conta nas redes sociais. As transformações que tanto desejamos serão semeadas, cultivadas e florescerão, à medida que formos ocupando os terrenos que até então, para nós, eram estranhos, distantes, inacessíveis; à medida que formos combatendo o obscurantismo, o desconhecimento e a negação da política; à medida que formos deixando de encarar as injustiças sociais como algo natural, relacionado à vontade das pessoas; à medida que formos desmistificando argumentos, teses mirabolantes e explicações extremamente simplórias para o que é complexo; à medida que formos formando a nós mesmos e apoiando a formação de outros tantos.
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