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27/03/2020 - 10:15

COVID-19: Impressão Sobre Comportamento

Em meados de fevereiro de 1987, o genial Prince editava um de seus sucessos mais espetaculares: o single Sign O’ The Times, que trata de alguns dos maiores infortúnios da década de 80.

Em lacônica poesia, à primeira linha do texto, o “ O Artista”, como ficou conhecido o cantor após seu icônico álbum The Love Symbol (1992), faz uma referência sinóptica ao vírus da AIDS.

Passado algum tempo, aquela “grande doença com um nome pequeno”, que o cantor de Minneapolis utilizou para principiar o efusivo e peremptório relato de Sign O’ The Times, adentraria ao organismo de Freddie Mercury, líder e vocalista da banda inglesa Queen, levando-o à morte em novembro de 1991.

Dado o estigma e no intento de evitar o sensacionalismo dos tabloides, foi a somente 24 horas antes de sua morte que Mercury emitiu um comunicado público para anunciar que havia contraído a doença então fatal.

Como sugeriu Albert Camus (A Peste), a AIDS, assim como outras pestes, pegou o mundo de surpresa. Isso tudo, mesmo quando os países desenvolvidos, nas décadas finais do Século XX, vangloriavam-se como pretensamente capazes de controlar todas as doenças infecciosas por intermédio de imunização e/ou tratamento.

É inegável que o surgimento da epidemia no princípio dos anos oitenta, contagiosa, grave e fatal, envolveu e modificou, à sua forma, diversos aspectos e contextos das relações humanas, alterando substancialmente, naquela e nas décadas seguintes, as perspectivas comportamentais das sociedades, mormente no que diz respeito à discussão sobre temas complexos e polêmicos, como sexualidade, reprodução, morte, uso de drogas ilícitas, confidencialidade, ética, preconceito, discriminação e outras variados assuntos que, direta ou indiretamente, correlacionavam-se com a AIDS e sua prevenção.

As notícias de novas contaminações, inclusive de grandes celebridades e personalidades políticas, somadas à ausência de informações determinantes sobre os modos de transmissão e contágio, acabaram por levar a um estado de pânico e incertezas.

Muita gente se recusava – e, certamente, há quem ainda o faça – a apertar a mão de alguém que se sabia contaminado, sentar-se nos mesmos bancos ou ficar na mesma sala, com medo de que a doença se transmitisse pelo ar ou pelo mero contato como uma gripe.

O surgimento da AIDS como epidemia e posteriormente como pandemia foi um evento marcante, exercendo, sim, grande influência comportamental sobre a cultura e o imaginário dos povos, principalmente os ocidentalizados.

Promoveu multiformes respostas e mudanças importantes, que se expressaram no comportamento das pessoas.

Em outras palavras, do Século XX até aqui, talvez nenhuma outra doença tenha mudado tanto os costumes no mundo, tornando-se quase folclórica.

Pelo menos não até agora. Pra que se tenha uma ideia, por se alastrar também através das relações sexuais, a revolução sexual dos anos 60 e 70, que vinha embalada e envolvida pelo discurso de liberdade sexual e de costumes, teve que pisar no freio, dando lugar à era do “sexo seguro”, com a redução do número de parceiros e com a constante de que era necessário o uso de preservativos (segundo estudos, em 1986, apenas 8% dos jovens brasileiros afirmaram ter usado camisinha na primeira relação sexual, contra 47,8% em 1998 e 65,8% em 2005).

Hoje em dia o “sexo seguro”, com uso de preservativo, tornou-se indiscutível política pública ostensiva de prevenção, mesmo à ilharga de credos religiosos e dogmas da fé que tiveram que se adaptar, ainda que com alguma e sempre renovada resistência, à nova realidade comportamental trazida pela AIDS, que também espraiou efeito sobre as políticas de natalidade.

Agora, quase quarenta anos depois de iniciada a epidemia da AIDS (depois pandemia), com os relatos dos primeiros casos documentados na década de 1980, um outro vírus com potencial pandêmico voltou a assombrar a humanidade.

Mais recentemente, em 31.12.19, um novo agente do coronavírus – assim descrito em decorrência de seu perfil na microscopia, que se parece com uma coroa – foi descoberto após casos registrados na China.

O vírus de agora, que provoca a doença batizada de COVID-19, causa infecção pulmonar, sendo que, nos casos mais brandos, de pacientes com bom estado de saúde e imunidade, apresenta-se como um resfriado comum ou uma gripe leve, chegando a ser assintomática em alguns indivíduos, a ponto de passar despercebida.

Obviamente, pelo menos a partir das informações ainda um pouco nebulosas até momento noticiadas, a COVID-19 não se equipara em gravidade clínica aos quadros do início da epidemia de AIDS, que foi considerada uma doença fatal, “uma irrevogável sentença de morte”, por muitos anos (letalidade certa para quem desenvolvia a doença após contrair o vírus HIV), até o desenvolvimento de terapias antirretrovirais específicas e hoje muito eficientes.

Nada obstante, o potencial de transmissibilidade da COVID-19, pela via do simples contato direto ou próximo com pessoas e objetos contaminados, torna-a uma fonte de pujantes questionamentos sobre as mudanças comportamentais esperadas nas sociedades póspandemia, já que, muito embora, por variados aspectos, menos grave que a AIDS, em menos de 15 (quinze) dias o agente causador foi o responsável, só no Brasil, pela contaminação de 2.433 pessoas, com um total de 57 mortes pela doença confirmadas até quarta-feira, dia 25.03.

O paralelo com a AIDS me parece algo interessante porque se houve uma série de mudanças comportamentais impostas como medidas preventivas e profiláticas, acendendo e, de certa forma, antecipando como necessário o debate de assuntos considerados tabus durante boa parte do Século XX, há também uma boa possibilidade – em escala mundial – de que a COVID-19 mude para sempre o modo como o qual nos relacionamos e enxergamos o outro, nossas relações interpessoais, fundamentalmente, e também nosso modo de demonstrar afeto.

Basta ver, no caso da COVID-19, as medidas profiláticas recomendadas pela OMS e autoridades de saúde, que impõe, fatalmente, um necessário distanciamento de corpos, com apelo – sem medo de exagerar – segregacionista.

Os veículos de imprensa fazem sua parte e dão ampla margem de disseminação a tais práticas.

Segundo o Ministério da Saúde do Brasil, “o toque do aperto de mão é a principal forma de contágio” pela COVID-19, de modo que a recomendação de “onda amigável sem contato físico”, hoje imagino que seguida por grande parte das comunidades sujeitas ao contágio, vai de encontro ao que muito tradicionalmente se pratica com afeto, por exemplo, nos encontros e relações na América Latina, que não ficam restritos ao simples ato de apertar as mãos, quase sempre embalado e seguido com um abraço fraterno, um tapa leve nas costas ou um beijo na lateral do rosto, tudo a se enquadrar no aparente conceito do que agora se tem como uma “perigosíssima aproximação”.

O raciocínio não muda muito se pensarmos que “gotículas de saliva” são também grandes transmissoras da COVID-19, impondo, doravante, um comportamento prudente e doloroso aos casais apaixonados, aos amigos do botequim da esquina que gostam de gritar gol e esbravejar alto um logro do juiz do futebol, e aos avós e pais que, até sabe-se lá quando for feita uma vacina, se for, não poderão beijar como antes os filhos e netos sem uma preocupação endossada pelo pânico de contrair a doença, principalmente nos grandes centros.

Nem falemos do problema das “aglomerações” e do necessário “distanciamento individual mínimo de 1,5m”, que também grassam, por um tempo indeterminado, como mudanças comportamentais profiláticas necessárias ao combate da COVID-19, e que muito provavelmente o hábito e o costume terão que dar conta de preservar se houver uma escalada mais agressiva e perigosa da pandemia.

A impressão que tenho é que a COVID-19 mudará, como já ocorreu antes e continuará ocorrendo com novos agentes infecciosos que parecem cada vez mais frequentes, de uma maneira especialmente sensível, o comportamento das grandes massas, e isto sem que a grande massa necessariamente perceba, dadas as novas dinâmicas muito rapidamente postas em prática, absortas em eficientes justificativas sanitárias. Se as mudanças do porvir serão positivas ou não, imagino que, também, tudo dependerá da minha e da sua capacidade de adaptação à distância, à reserva e à solidão, há muito estimuladas como políticas do Estado individualista, e que com fundo em alguma sazonalidade histórica – sanitária ou não – vêm à lume para nos modificar. 
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