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09/07/2019 - 12:52

Vida Maria: Entre a Força e a Ternura (parte I)

“Lava roupa todo dia, que agonia”, nessa toada trouxas e mais trouxas, buscávamos, mãe lavava, passava e entregávamos de volta, agora com cuidado pra não amassar. Trouxas na cabeça a atravessar a cidade, nenhum constrangimento, disso vinha o sustento.

Mas, nem tudo era agonia, a lida era embalada pelo radinho de pilha em cima da caixa d’água... Houve até incidente em que, pra nossa tristeza, o bendito mergulhou. Torneira saindo no tanque não havia, de balde em balde enchia-se o tanque, que já era o progresso, antes um batedor de roupas, tora traçada ao meio em que as roupas eram batidas, esfregadas, quaradas ao sol, fervidas, etc, etc.

De olhos fechados, posso ouvir misturados aos sons musicais das últimas paradas em AM o esfrega e bate pelos braços fortes de nossa mãe. Sabíamos de cor cada sucesso. Penso que vem disso a crença de que as artes nos salvam, nos intervalos rápidos das refeições, dê-lhe fotonovelas, Sabrina, Júlia, Bianca... Quem disse que a literatura de massa não tem o seu valor? As fotonovelas em preto e branco ou coloridas faziam sonhar, descansar um cadinho e criar cumplicidade entre mãe e filhas (no plural), mas quem mais disputava as revistas era eu, as demais irmãs não tinham a mesma paixão.

Que dias da semana seguiam essa rotina? Todos, inclusive, aos domingos. Sim, por bom tempo nem o domingo escapava, clientes muitas, necessidade enorme e a lavadeira disputada, afirmavam as madames: era “A Melhor”. Em tempos que não existia amaciante, diziam: incrível como as roupas vêm cheirosas.

 Plano de carreira? Por peça, por dúzia por mês, da exploração não havia meios de fuga, mas entre as muitas patroas, algumas mais humanas, reconheciam e valorizavam, sendo mais justas no aqué.

Achou longa a lida, caro leitor? Isso não é tudo, enquanto ao sol as roupas secavam para passar ferro à brasa, havia outros vínculos empregatícios não menos cansativos. Ainda assim, o assoalho da casa (a nossa), antes de inovarmos com o uso da cera e do escovão, era lavado e de uma brancura como poucos eu vi.

Na próxima, pra não embolar aos demais, revelarei mais um pouco das tantas atividades dessa mulher que nunca deixou a peteca cair, hoje aos 76 anos, colete para a coluna e tendões dos ombros desgastados, noites de dor intensa, mas sem perder a ternura, jamais.

Proibida de crochetar seus belos tapetes coloridos, aderiu às redes sociais e fala com os filhos pelo Zap, antes mesmo de se levantar, ao amanhecer. Caso não encontre ninguém disponível pra papear, manda mensagens poderosas, engraçadas, deseja ótimo dia pra família de longe e de perto. Eis a Dona Maria, como tantas Marias das periferias.
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