Recentemente, por unanimidade, o Supremo Tribunal Federal (STF) firmou entendimento de que a tese da legítima defesa da honra é inconstitucional, por violar os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da proteção à vida e da igualdade de gênero. A decisão, tomada na sessão virtual encerrada em 12/3, referendou liminar concedida pelo ministro Dias Toffoli em fevereiro, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 779.
Ainda que, o presidente Jair Bolsonaro sancionou, na segunda-feira 22/11, a Lei 14.245/2021. Conhecida como Lei Mariana Ferrer, a legislação prevê punição para constrangimentos sofridos por vítimas de violência sexual e testemunhas em julgamentos. O texto foi publicado no
Diário Oficial da União desta terça-feira e entra em vigor imediatamente.
Estes dois novos institutos processuais, um de ordem jurisprudencial e outro de natureza legal, vêm caracterizando um novo momento do processo penal em espécie, uma vez que passam a adotar critérios de proteção dos direitos das vítimas, algo que não existia até então na esfera do processo penal: o lugar da vítima. Muito se reclamava, já há mais de uma década, de que a vítima não tinha representação ou interesse de direito legítimo no processo penal, pensado na década de 1940 e construído como monopólio exclusivo do Estado na persecução e punição dos delitos e crimes.
O argumento central do monopólio estatal da punição dos crimes reside no estabelecimento de uma condição qual não seja mais possível, nem aceitável o exercício da vingança privada, da
vendeta pessoal. É um argumento de segurança pública, de responsabilidade do Estado na consecução e manutenção da paz social. Entretanto, o que se percebe cada vez mais, é que a paz social não exige que a vítima seja completamente alijada do processo penal, existindo apenas como objeto nele, sem ser sujeito de seus próprios direitos e interesses, quais sejam, da proteção de sua integridade e da pretensão de ver retribuído o mal que haja sofrido.
Por outro lado, a Constituição no seu art. 5º, inciso XXXVIII, estabelece o exercício da plenitude de defesa nos julgamentos afetos ao Tribunal do Júri, os crimes dolosos contra a vida:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
XXXVIII – é reconhecida a
instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados:
a) a plenitude de defesa;
b) o sigilo das votações;
c) a soberania dos veredictos;
d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida;
A plenitude da defesa nos julgamentos do Tribunal do Júri é uma prerrogativa dos advogados e defensores públicos que atuam neste tribunal. Ela não se confunde com a garantia constitucional que a Carta outorga aos acusados no processo criminal de ampla defesa. Ampla defesa e plenitude de defesa não se confundem. Amplo é um conceito menor que pleno. Ou seja, nossa ordem jurídica outorga na plenitude de defesa, que os advogados e defensores públicos possam ir além da garantia de ampla defesa (estritamente jurídica) para a plenitude (além do estritamente jurídico) do advogado ou defensor público do acusado usar possibilidade de convencer os jurados utilizando argumentos além de técnicos,
éticos, morais, religiosos, sociológicos.
Antes de considerar o dispositivo constitucional da plenitude da defesa nos julgamentos do Tribunal do Júri um permissivo para que se ataque a integridade da vítima ponhamos os olhos nos votos da ADPF 779.
Segundo Toffoli, a legítima defesa da honra além de ser um argumento “
atécnico e extrajurídico”, a tese é um “
estratagema cruel, subversivo da dignidade da pessoa humana e dos direitos à igualdade e à vida” e totalmente discriminatório contra a mulher. A seu ver, trata-se de um recurso argumentativo e retórico “
odioso, desumano e cruel” utilizado pelas defesas de acusados de feminicídio ou agressões contra mulher para imputar às vítimas a causa de suas próprias mortes ou lesões, contribuindo para a naturalização e a perpetuação da cultura de violência contra as mulheres no Brasil.
Ao ressaltar que o argumento não é, tecnicamente, legítima defesa (essa, sim, causa de excludente de ilicitude), Toffoli registrou que, para evitar que a autoridade judiciária absolva o agente que agiu movido por ciúme, por exemplo, foi inserida no Código Penal a regra do artigo 28 de que a emoção ou a paixão não excluem a imputabilidade penal. “
Portanto, aquele que pratica feminicídio ou usa de violência, com a justificativa de reprimir um adultério, não está a se defender, mas a atacar uma mulher de forma, desproporcional, covarde e criminosa”, afirmou.
Para o ministro Alexandre de Moraes no julgamento da ADPF 779, o Estado não pode permanecer omisso perante a naturalização da violência contra a mulher, sob pena de ofensa ao princípio da vedação da proteção insuficiente e do descumprimento ao compromisso adotado pelo Brasil de coibir a violência no âmbito das relações familiares. A ministra Cármen Lúcia, por sua vez, afirmou que a tese não tem amparo legal e foi construída como forma de adequar práticas de violência e morte “
à tolerância vívida”, na sociedade, aos assassinatos de mulheres tidas por adúlteras ou com comportamento que destoe do desejado pelo matador. Já o ministro Gilmar Mendes ressaltou que a tese é pautada “
por ranços machistas e patriarcais, que fomentam um ciclo de violência de gênero na sociedade”.
Já a nova Lei nº 14.245/2021, conhecida como Lei Mari Ferrer, estabelece o seguinte, para os casos em que não se envolve a jurisdição do Tribunal do Júri:
"Art. 400-A. Na audiência de instrução e julgamento, e, em especial, nas que apurem crimes contra a dignidade sexual, todas as partes e demais sujeitos processuais presentes no ato deverão zelar pela integridade física e psicológica da vítima, sob pena de responsabilização civil, penal e administrativa, cabendo ao juiz garantir o cumprimento do disposto neste artigo, vedadas:
I - a manifestação sobre circunstâncias ou elementos alheios aos fatos objeto de apuração nos autos;
II - a utilização de linguagem, de informações ou de material que ofendam a dignidade da vítima ou de testemunhas."
E para os casos do Tribunal do Júri:
"Art. 474-A. Durante a instrução em plenário, todas as partes e demais sujeitos processuais presentes no ato deverão respeitar a dignidade da vítima, sob pena de responsabilização civil, penal e administrativa, cabendo ao juiz presidente garantir o cumprimento do disposto neste artigo, vedadas:
I - a manifestação sobre circunstâncias ou elementos alheios aos fatos objeto de apuração nos autos;
II - a utilização de linguagem, de informações ou de material que ofendam a dignidade da vítima ou de testemunhas."
§ 1º-A. Durante a audiência, todas as partes e demais sujeitos processuais presentes no ato deverão respeitar a dignidade da vítima, sob pena de responsabilização civil, penal e administrativa, cabendo ao juiz garantir o cumprimento do disposto neste artigo, vedadas:
I - a manifestação sobre circunstâncias ou elementos alheios aos fatos objeto de apuração nos autos;
II - a utilização de linguagem, de informações ou de material que ofendam a dignidade da vítima ou de testemunhas.
Esse é o novo e complexo instituto de proibição da
revitimização que agora se insere no processo penal. Socialmente ele se inicia sob uma alavanca neoconservadora e de linguagem punitivista que começa no início dos anos 2000 com apresentadores de noticiários policialescos, bizarros e espetaculares perguntando sobre onde se encontravam os direitos humanos das vítimas? A resposta começa a surgir agora. Estamos muito longe do sistema penal do Reino Unido onde a representação processual das vítimas é obrigatória em classes inteiras do processo criminal, mas já se trata de um começo enquanto se arrasta por mais de 30 anos a reforma do Código de Processo Penal entre nós.
Embora a
revitimização seja um conceito ambíguo, de poucos contornos definidos ainda, nossa lei processual já previa nos casos de depoimento da vítima, que se houvesse qualquer constrangimento dessa, que o magistrado afastasse do réu ou acusado da audiência de instrução conforme art. 217,
do CPP. Pois, a própria rememoração da situação traumática pela qual tinha passado consistia, por si só, uma espécie de revivência do trauma, uma
revitimização.
A Lei 13.431/2017, também visando a proteção contra a
revitimização, estabeleceu o
depoimento sem dano para o caso de crianças e adolescentes que tenham sido vítimas ou testemunhas de crimes violentos.
Com certeza o primeiro instituto legal de tutela e defesa dos direitos das vítimas foi a já famosa Lei Maria da Penha, Lei nº Lei n.º 11.340/06, ao instituir as medidas protetivas em favor das mulheres submetidas à violência doméstica. Agora essa tendência de incorporar os direitos e interesses das vítimas no processo penal ganha força e momento, estabelecendo novas tensões entre concepções punitivistas e garantistas do direito criminal.
Sobre a ambiguidade da
revitimização temos que, por definição, nos crimes comuns do sistema de direito penal a vítima é definida como “
qualquer pessoa”
, já nos casos acima de tutela e proteção dos direitos das vítimas é orientada por classes e grupos sociais hipossuficientes, como mulheres em situação de violência doméstica, crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de crimes violentos; e, finalmente, com a edição da Lei Mari Ferrer, uma conotação mais difusa da categoria de vítima, muito mais próxima do “
qualquer pessoa” da técnica do Código Penal de classificação dos crimes comuns.
De alguma forma, a
revitimização afeta o conceito de
plenitude de defesa. Ela não deixa de existir, porém encontra um novo limite onde a jurisprudência e as leis processuais passam a proteger os direitos das vítimas. Adaptar-se aos novos limites é uma tarefa da advocacia criminal. Em que pesem as vedações legais e a declaração de inconstitucionalidade do Supremo ainda existem muitos argumentos
para e
metajurídicos que tendem a absolver o acusado ou réu que não estão proibidos, caracterizando, assim, o exercício da
plenitude de defesa. O modo como vamos experimentar isso na advocacia e na prática forense não vai ser tranquilo posto que as tensões próprias do direito penal vão ficar mais evidentes.