Artigos / Marcelo Horn

13/12/2021 - 13:23

Lei Mariana Ferrer, Tribunal de Júri e a plenitude do exercício da defesa criminal ante a proibição da revitimização de um aparente conflito

             Recentemente, por unanimidade, o Supremo Tribunal Federal (STF) firmou entendimento de que a tese da legítima defesa da honra é inconstitucional, por violar os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da proteção à vida e da igualdade de gênero. A decisão, tomada na sessão virtual encerrada em 12/3, referendou liminar concedida pelo ministro Dias Toffoli em fevereiro, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 779.

Ainda que, o presidente Jair Bolsonaro sancionou, na segunda-feira 22/11, a Lei 14.245/2021. Conhecida como Lei Mariana Ferrer, a legislação prevê punição para constrangimentos sofridos por vítimas de violência sexual e testemunhas em julgamentos. O texto foi publicado no Diário Oficial da União desta terça-feira e entra em vigor imediatamente.

Estes dois novos institutos processuais, um de ordem jurisprudencial e outro de natureza legal, vêm caracterizando um novo momento do processo penal em espécie, uma vez que passam a adotar critérios de proteção dos direitos das vítimas, algo que não existia até então na esfera do processo penal: o lugar da vítima. Muito se reclamava, já há mais de uma década, de que a vítima não tinha representação ou interesse de direito legítimo no processo penal, pensado na década de 1940 e construído como monopólio exclusivo do Estado na persecução e punição dos delitos e crimes.

O argumento central do monopólio estatal da punição dos crimes reside no estabelecimento de uma condição qual não seja mais possível, nem aceitável o exercício da vingança privada, da vendeta pessoal. É um argumento de segurança pública, de responsabilidade do Estado na consecução e manutenção da paz social. Entretanto, o que se percebe cada vez mais, é que a paz social não exige que a vítima seja completamente alijada do processo penal, existindo apenas como objeto nele, sem ser sujeito de seus próprios direitos e interesses, quais sejam, da proteção de sua integridade e da pretensão de ver retribuído o mal que haja sofrido.
Por outro lado, a Constituição no seu art. 5º, inciso XXXVIII, estabelece o exercício da plenitude de defesa nos julgamentos afetos ao Tribunal do Júri, os crimes dolosos contra a vida:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

XXXVIII – é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados:
a) a plenitude de defesa;
b) o sigilo das votações;
c) a soberania dos veredictos;
d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida;

A plenitude da defesa nos julgamentos do Tribunal do Júri é uma prerrogativa dos advogados e defensores públicos que atuam neste tribunal. Ela não se confunde com a garantia constitucional que a Carta outorga aos acusados no processo criminal de ampla defesa. Ampla defesa e plenitude de defesa não se confundem. Amplo é um conceito menor que pleno. Ou seja, nossa ordem jurídica outorga na plenitude de defesa, que os advogados e defensores públicos possam ir além da garantia de ampla defesa (estritamente jurídica) para a plenitude (além do estritamente jurídico) do advogado ou defensor público do acusado usar possibilidade de convencer os jurados utilizando argumentos além de técnicos, éticos, morais, religiosos, sociológicos.

Antes de considerar o dispositivo constitucional da plenitude da defesa nos julgamentos do Tribunal do Júri um permissivo para que se ataque a integridade da vítima ponhamos os olhos nos votos da ADPF 779.

Segundo Toffoli, a legítima defesa da honra além de ser um argumento “atécnico e extrajurídico”, a tese é um “estratagema cruel, subversivo da dignidade da pessoa humana e dos direitos à igualdade e à vida” e totalmente discriminatório contra a mulher. A seu ver, trata-se de um recurso argumentativo e retórico “odioso, desumano e cruel” utilizado pelas defesas de acusados de feminicídio ou agressões contra mulher para imputar às vítimas a causa de suas próprias mortes ou lesões, contribuindo para a naturalização e a perpetuação da cultura de violência contra as mulheres no Brasil.

Ao ressaltar que o argumento não é, tecnicamente, legítima defesa (essa, sim, causa de excludente de ilicitude), Toffoli registrou que, para evitar que a autoridade judiciária absolva o agente que agiu movido por ciúme, por exemplo, foi inserida no Código Penal a regra do artigo 28 de que a emoção ou a paixão não excluem a imputabilidade penal. “Portanto, aquele que pratica feminicídio ou usa de violência, com a justificativa de reprimir um adultério, não está a se defender, mas a atacar uma mulher de forma, desproporcional, covarde e criminosa”, afirmou.

Para o ministro Alexandre de Moraes no julgamento da ADPF 779, o Estado não pode permanecer omisso perante a naturalização da violência contra a mulher, sob pena de ofensa ao princípio da vedação da proteção insuficiente e do descumprimento ao compromisso adotado pelo Brasil de coibir a violência no âmbito das relações familiares. A ministra Cármen Lúcia, por sua vez, afirmou que a tese não tem amparo legal e foi construída como forma de adequar práticas de violência e morte “à tolerância vívida”, na sociedade, aos assassinatos de mulheres tidas por adúlteras ou com comportamento que destoe do desejado pelo matador. Já o ministro Gilmar Mendes ressaltou que a tese é pautada “por ranços machistas e patriarcais, que fomentam um ciclo de violência de gênero na sociedade”.

Já a nova Lei nº 14.245/2021, conhecida como Lei Mari Ferrer, estabelece o seguinte, para os casos em que não se envolve a jurisdição do Tribunal do Júri:

"Art. 400-A. Na audiência de instrução e julgamento, e, em especial, nas que apurem crimes contra a dignidade sexual, todas as partes e demais sujeitos processuais presentes no ato deverão zelar pela integridade física e psicológica da vítima, sob pena de responsabilização civil, penal e administrativa, cabendo ao juiz garantir o cumprimento do disposto neste artigo, vedadas:

I - a manifestação sobre circunstâncias ou elementos alheios aos fatos objeto de apuração nos autos;
II - a utilização de linguagem, de informações ou de material que ofendam a dignidade da vítima ou de testemunhas."
E para os casos do Tribunal do Júri:
"Art. 474-A. Durante a instrução em plenário, todas as partes e demais sujeitos processuais presentes no ato deverão respeitar a dignidade da vítima, sob pena de responsabilização civil, penal e administrativa, cabendo ao juiz presidente garantir o cumprimento do disposto neste artigo, vedadas:
I - a manifestação sobre circunstâncias ou elementos alheios aos fatos objeto de apuração nos autos;
II - a utilização de linguagem, de informações ou de material que ofendam a dignidade da vítima ou de testemunhas."
§ 1º-A. Durante a audiência, todas as partes e demais sujeitos processuais presentes no ato deverão respeitar a dignidade da vítima, sob pena de responsabilização civil, penal e administrativa, cabendo ao juiz garantir o cumprimento do disposto neste artigo, vedadas:
I - a manifestação sobre circunstâncias ou elementos alheios aos fatos objeto de apuração nos autos;
II - a utilização de linguagem, de informações ou de material que ofendam a dignidade da vítima ou de testemunhas.
Esse é o novo e complexo instituto de proibição da revitimização que agora se insere no processo penal. Socialmente ele se inicia sob uma alavanca neoconservadora e de linguagem punitivista que começa no início dos anos 2000 com apresentadores de noticiários policialescos, bizarros e espetaculares perguntando sobre onde se encontravam os direitos humanos das vítimas? A resposta começa a surgir agora. Estamos muito longe do sistema penal do Reino Unido onde a representação processual das vítimas é obrigatória em classes inteiras do processo criminal, mas já se trata de um começo enquanto se arrasta por mais de 30 anos a reforma do Código de Processo Penal entre nós.

Embora a revitimização seja um conceito ambíguo, de poucos contornos definidos ainda, nossa lei processual já previa nos casos de depoimento da vítima, que se houvesse qualquer constrangimento dessa, que o magistrado afastasse do réu ou acusado da audiência de instrução conforme art. 217, do CPP. Pois, a própria rememoração da situação traumática pela qual tinha passado consistia, por si só, uma espécie de revivência do trauma, uma revitimização.

A Lei 13.431/2017, também visando a proteção contra a revitimização, estabeleceu o depoimento sem dano para o caso de crianças e adolescentes que tenham sido vítimas ou testemunhas de crimes violentos.

Com certeza o primeiro instituto legal de tutela e defesa dos direitos das vítimas foi a já famosa Lei Maria da Penha, Lei nº Lei n.º 11.340/06, ao instituir as medidas protetivas em favor das mulheres submetidas à violência doméstica. Agora essa tendência de incorporar os direitos e interesses das vítimas no processo penal ganha força e momento, estabelecendo novas tensões entre concepções punitivistas e garantistas do direito criminal.

Sobre a ambiguidade da revitimização temos que, por definição, nos crimes comuns do sistema de direito penal a vítima é definida como “qualquer pessoa, já nos casos acima de tutela e proteção dos direitos das vítimas é orientada por classes e grupos sociais hipossuficientes, como mulheres em situação de violência doméstica, crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de crimes violentos; e, finalmente, com a edição da Lei Mari Ferrer, uma conotação mais difusa da categoria de vítima, muito mais próxima do “qualquer pessoa” da técnica do Código Penal de classificação dos crimes comuns.

De alguma forma, a revitimização afeta o conceito de plenitude de defesa. Ela não deixa de existir, porém encontra um novo limite onde a jurisprudência e as leis processuais passam a proteger os direitos das vítimas. Adaptar-se aos novos limites é uma tarefa da advocacia criminal. Em que pesem as vedações legais e a declaração de inconstitucionalidade do Supremo ainda existem muitos argumentos para e metajurídicos que tendem a absolver o acusado ou réu que não estão proibidos, caracterizando, assim, o exercício da plenitude de defesa. O modo como vamos experimentar isso na advocacia e na prática forense não vai ser tranquilo posto que as tensões próprias do direito penal vão ficar mais evidentes.
Marcelo Horn

por Marcelo Horn

Advogado e professor universitário (UNEMAT), Especialista em Direito Público, Mestre em Direito, Doutorando em Linguística.
 

 
 
 
 
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