Artigos / Ney Nogueira

30/11/2021 - 10:14

Alguns aspectos jurídicos e legais do monitoramento da atividade policial

O fato de as forças policiais brasileiras, segundo relatório da anistia internacional, serem consideradas as que mais matam no mundo, tem impulsionado discussões entre especialistas em segurança pública, agentes políticos e a sociedade civil organizada para criar mecanismos que consigam alterar esse triste cenário de violência e fraudes processuais.

Entre esses mecanismos, destacam-se a inclusão de câmera eletrônica com capacidade de gravação de áudio e vídeo em uniformes policiais a fim de que o controle, interno e externo, da Administração Pública tenha acesso documental, e principalmente visual, das cenas dos crimes e da atuação policial.

São vários os aspectos legais e jurídicos a serem analisados nessa implementação, podendo destacar entre eles:

1. Constitucionalidade da medida.

Entendo totalmente constitucional a medida por diversos fatores. Primeiro porque a segurança pública, entendida esta como as medidas estatais que visam a proteção da vida e a incolumidade das pessoas e do patrimônio, público ou privado, é direito fundamental de todas as pessoas, físicas ou jurídicas, nacionais ou estrangeiras.

Além disso, outra garantia fundamental é a do devido processo legal. Se uma pessoa pratica um crime, a Constituição determina que ela seja presa, conduzida até uma autoridade policial que fará a primeira análise jurídica do fato por ela praticado e se entender pela tipicidade da conduta, mandará lavrar o Auto de Prisão em Flagrante, apresentando tal documentação e o preso ao Poder Judiciário.

Logo, da análise desses procedimentos descritos no Código de Processo Penal, conclui-se que a polícia não é julgadora, não é acusadora e não é executora da pena, funções estas que, constitucionalmente, foram determinadas ao Poder Judiciário, ao Ministério Público e ao Sistema Penal/Socioeducativo, respectivamente.

Todas essas linhas acima demonstram o óbvio: policial não pode matar ninguém a seu bel-prazer. O leitor mais desavisado poderia dizer: certo, mas o que o policial faz quando estiver numa situação de risco? O próprio ordenamento jurídico brasileira dá a resposta: quando, real e efetivamente, o policial estiver sendo ameaçado em sua integridade física por criminosos, pode (e deve) agir em legítima defesa e usar, legalmente, sua arma de fogo, estando esta violência autorizada e totalmente de acordo com a legislação brasileira.

O que não se permite é que locais de crimes sejam alterados/forjados/fraudados, armas “frias” sejam “plantadas” nesses locais e policiais que atenderam o ocorrência retratem a situação diferente da forma como realmente aconteceu. Esta é a medida que deve ser combatida e entendo que as câmeras podem ajudar a alterar esse cenário.

Repetindo, a constitucionalidade da medida é evidente no ponto que essa tecnologia pode contribuir para que direitos fundamentais, como a vida e o devido processo legal, sejam respeitados por agentes estatais.
 
2. Motivação do ato administrativo.

Os atos administrativos, de acordo com doutrina clássica, tem como elementos: competência, finalidade, forma, motivo e objeto. Ainda, motivo não se confunde com motivação, pois enquanto esta é a justificativa escrita sobre as razões fáticas e jurídicas que determinaram a prática do ato, aquela é o fato que autoriza a realização do ato administrativo.

Assim, a motivação para que as Secretarias de Segurança Pública dos Estados e do Distrito Federal instalem as câmeras em uniformes policiais pode ser a alta taxa de mortalidade das suas polícias quando no exercício de sua função.

Evidente que outras motivações podem estar presentes no ato como a busca da verdade real nos processos administrativos disciplinares que envolvam os policiais, a transformação da presunção relativa para presunção absoluta das informações inseridas nos boletins de ocorrências com resultado morte que forem confeccionados pelos agentes policiais, elementos de convicção que apontem autoria e materialidade do delito perpetrado pelo criminoso e que podem ser juntados ao inquérito policial e depois à ação judicial e a possibilidade dessas imagens e áudios comprovarem a atuação correta e legal do policial.

Da análise desses elementos acima, questiona-se: se as câmeras são uma garantia a mais de que o policial agiu corretamente na condução da ocorrência, por que tanta resistência em sua aplicação? É algo a ser questionado por todos.
 
3. Direitos de privacidade.

O direito à privacidade garante que o Estado não divulgue certos dados pessoais do cidadão, principalmente sem a sua autorização. Noutro giro, quando acontece a prática de um crime, devem os órgãos estatais tomar as providências no sentido de solucionar aquele fato, comprovando autoria, materialidade e motivação dessa conduta criminosa.

Como conciliar tais princípios? Entendo que os dados de áudio e vídeo captados durante a atuação policial devem ter tratamento próprio e com observância da Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº 13.709/2018), ou seja, o uso é próprio da Administração Pública, mas pode ser compartilhado com órgãos de imprensa, Ministério Público e Polícia Judiciário no exercício da função e principalmente com o Poder Judiciário, tendo em vista o princípio da inafastabilidade da jurisdição (Art. 5º, XXXV, CF).

Dessa forma, não há motivos para que as imagens de todas as ocorrências policiais registradas sejam divulgadas, principalmente em redes sociais, tendo em vista que não são todas as situações vivenciadas pelas polícias brasileiras que acontecem crimes. Imagine uma abordagem rotineira numa via pública e que o policial constate que a documentação do veículo está regular, assim como os documentos dos ocupantes dos veículos.

Realizada uma busca pessoal e vistoria veicular nada de ilícito é encontrado e os passageiros são liberados enquanto os policiais seguem para atender outra ocorrência.

Que motivos teriam para divulgar essas imagens? Nenhum. Por isso defendo que os dados coletados pelos agentes públicos em serviço são dados da Administração Pública e só podem ser usados para fins específicos como investigações policiais e administrativas ou requisição judicial.
 
4. Segurança da informação.

Ainda sobre o tratamento aos dados coletados pelas câmeras em uniformes policiais, a segurança da informação é algo que deve ser bem pensado e executado pelos órgãos públicos.

Isso porque falhas de segurança no arquivamento, cyberataques e outros tipos de vazamento podem desafiar indenizações por parte da Administração Pública, bem como expor diversas situações que ofendam a vida íntima, a privacidade e a intimidade das pessoas.

Além disso, o sistema deve ser antifraude e não permitir a edição dos vídeos e áudios. Claro, de nada adiantaria coletar os dados da ocorrência se estes pudessem ser fraudados ou manipulados por agentes de má índole. Essa garantia de autenticidade dos dados coletados deve acontecer desde o início de sua captura no momento da ocorrência até momento posterior.

Outro problema que surge é: até quando guardar esses arquivos? A práxis administrativa trabalha com o prazo de 5 (cinco) anos para ser autorizado o descarte. O problema aqui é a manipulação desses arquivos se relacionarem às questões penais que têm prazo diferenciados no Código Penal, principalmente no que se refere a prazos prescricionais.

Dessa forma, entendo que o descarte dos arquivos só pode ser realizado após o transcurso do prazo prescricional atribuído ao crime em comento. Exemplo: Guarnição da PM vai atender uma ocorrência policial de homicídio, crime este apenado com reclusão de 6 a 20 (modalidade simples) e 12 a 30 (qualificado). Logo, o prazo de prescrição desses crimes é de 20 (vinte) anos. Assim, entendo que durante todo esse período de vinte anos as imagens e áudios devem estar à disposição das autoridades competentes e órgãos da imprensa.
 
5. Relação jurídica do agente público com a Administração Pública.

Com vistas à implementação das câmeras em uniformes policiais, podem surgir questionamentos judiciais e administrativos por parte dos policiais sobre a necessidade de usar tal aparelho ou mesmo sua obrigatoriedade. Para solucionar tais questionamentos deve ser analisada a relação jurídica existente entre a Administração Pública e seus agentes públicos.

Diferente de uma relação entre empregado e empregador na iniciativa privada, no serviço público a relação entre Estado e agente público é gerida por normas de direito público, fazendo com que o regime jurídico dessa relação deva ser estudada analisando essas particularidades.

Sem a pretensão de esgotar o tema, se há lei ordinária e regulamentação normativa prevendo a obrigatoriedade de toda atuação policial ser gravada, essa determinação está amparada pelo poder normativo, hierárquico e disciplinar de que dispõe a Administração Pública.

Assim, embora o policial ou mesmo seu sindicato/associação possam acionar o Poder Judiciário questionando o uso dessas tecnologias, a análise jurídica do fato deve se ater à natureza jurídica do serviço público prestado (segurança pública), supremacia do interesse público sobre o privado e o regime jurídico existente entre o Estado e o agente público.
 
6. Infrações Administrativas.

Os servidores públicos brasileiros são regidos pelos Estatutos dos Servidores Públicos que são leis elaboradas pelo Poder Legislativo competente. Na União essa lei é a de nº 8.1112/90 e no Estado de Mato Grosso é a Lei Complementar nº 04/90 para os servidores públicos civis. No caso dos policiais militares do Estado de Mato Grosso, o estatuto é a LC 555/2014.

Nesses estatutos é que estão descritos os direitos, garantias, proibições, deveres, normas previdenciárias e várias outras situações reguladoras dessa relação da Administração Pública com o agente. É norma cogente e impositiva ao agente público, que, ao tomar posse, faz o juramento de cumprir as normas vigentes e exercer as suas atribuições com zelo.

Ainda, entre os deveres impostos aos agentes públicos encontram-se o de zelar pela economia do material e a conservação do patrimônio público. A razão de ser dessa norma se deve pelo fato de que os bens públicos são adquiridos com impostos pagos por toda sociedade e devem ser usados em benefício desta. Embora não haja necessidade de incluir as câmeras filmadoras na lei instituidora do monitoramento policial, pois a partir do momento que o Estado adquire tais câmeras elas já passam, automaticamente, a fazer parte do patrimônio público, é de bom tom elencar novas modalidades de infrações administrativas consistentes na proibição de desligar o equipamento, obstruir seu funcionamento de qualquer forma, fraudar os dados obtidos e demais condutas relacionadas.
 
CONCLUSÃO

Embora o tema ainda demande muitas discussões éticas, jurídicas e legais, espera-se que a inclusão urgente desse aparato tecnológico diminua a letalidade policial, as fraudes processuais praticadas em locais de crime que são alterados frequentemente e também a morte de policiais ocorridas em serviços e em circunstâncias que quase nunca são esclarecidas.

Uma polícia técnica, bem preparada e que cumpra a lei fazendo a prisão de quem pratica crime e levando à julgamento pelo Poder Judiciário é direito fundamental que alcança a todas as pessoas, independente da extensão de sua ficha criminal e do seu crime praticado.
Ney Nogueira

por Ney Nogueira

Especialista, Mestre e Doutorando em Direito
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1 comentário

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  • por Sebastião Andrade Ribeiro, em 30.11.2021 às 17:49

    Muito bom Ney! Parabéns pela abordagem ao tema ainda polêmico!

 
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