Artigos / José Ricardo Menacho

03/09/2021 - 09:33

As [fabulosas] aventuras do caçador de patriotas

Verbetes:
[...]
[Patriota embandeirado]: espécime comum. Circula pelas ruas, em manifestações e protestos, enrolado em uma bandeira. Acredita que ela, como um escudo “patriótico”, protege-o dos males e das intempéries do mundo. Sua crença é tão fervorosa, que não a tira de seu corpo, nem para tomar banho.
 
[Patriota agressivo]: espécime perigosa. Frequenta os espaços públicos, criando caso com quem não comunga de seus ideais. Participa ativamente nas redes sociais, comentando sobre tudo e sobre todos, mas nunca comentando ou refletindo sobre si e sobre seus atos. Não dialoga, apenas vocifera impropérios. Pensa que vencer no grito e na violência são manifestações de seu absoluto e sagrado direito à liberdade de expressão. Para defender o indefensável, com muita habilidade, salta das catacumbas dos faraós, no Egito Antigo, à Segunda Guerra Mundial, num impulso só. Costuma dizer aos seus correligionários, com muita convicção, em todas as reuniões que participa, seu desejo de fazer um financiamento bancário para comprar um tanque de guerra e, assim, garantir a segurança de sua casa.
 
[Patriota paranoico]: espécime raro. Evita sair de casa por medo de ataques alienígenas e das tropas vermelhas. Fiel, recita os hinos nacional e da independência, todos os dias, antes de dormir e antes de se levantar, como forma de afastar os maus espíritos. Proíbe sua prole de conversar com os vizinhos e de ir à escola, pois tem certeza de que, nesses ambientes, eles podem ser convertidos em aliados do inimigo. É contra a ciência. Não toma remédios, vacinas, tampouco se consulta com médicos ou dentistas. Deixa-se conduzir somente pelas palavras do líder que escolheu para chamar de seu.
 
[Patriota possessivo-narcisista]: espécime “arroz de festa”. Atua, predominante, no mundo virtual. Faz postagens infindáveis de si e sobre como o mundo deveria ser de acordo com a sua imagem e semelhança. Posta dez selfies por minuto, com a mesma pose, roupa e com o rosto pintado de tinta guache. Cria coreografias e adereços dizendo que são formas carinhosas de exaltar a pátria, mas o que quer mesmo é se promover. “Eu eu eu eu eu...”, “meu meu meu meu...” essas, basicamente, são as suas palavras prediletas. Entende que a Nação é sua, tão somente sua, que o país é seu e que é dono e proprietário do espaço público. É por essas e por outras que ele se vê no direito de impor seus delírios a todos, afinal, tudo pertence a ele.
 
[Patriota moralista]: espécime comum. Supõe ser o ungido, o eleito que conduzirá os pecadores à conversão. Gosta de fazer fofocas e intrigas sobre a vida alheia. Constrange e humilha aos que não o obedecem. Idealiza e fixa papéis sociais. Segundo ele, cada um tem a sua função e o seu lugar na sociedade e ninguém está autorizado a subvertê-los. Sequestra, com frequência, os símbolos nacionais a fim de legitimar suas crendices e, assim, vendê-las como o suprassumo da revelação divina. Para dar legitimidade ao que professa, só sai de casa com uma faixa, que envolve seu tronco, assentada na diagonal, feita de cartolina, no estilo presidencial, com o brasão da República, colorido com canetinha, unindo as duas pontas. Confunde o espaço público com a sua casa, com a sua vida privada. Fala e julga o tempo todo o próximo, mas é incapaz de lhe estender as mãos, é incapaz de repartir o pão, mesmo que tenha em abundância.
 
[...]. Aos poucos, o catálogo foi se formando.
 
***
 
I. Ficha cadastral
 
Muitos, ao final de uma longa trajetória profissional, fazem um balanço das atividades realizadas. Outros, a depender da fama, aconselhados por amigos ou mesmo orientados por alguma editora, além do balanço, decidem escrever um livro de memórias, uma autobiografia, narrando, com uma verve poética, seus [grandes] feitos, suas aventuras e perrengues. Acho que eu não me enquadro em nenhuma dessas tradições. Nunca fui referência para nada, tampouco o que andei fazendo, nas duas últimas décadas, ganhou muita repercussão. Porém, mesmo tendo plena dimensão de minha insignificância – afinal, quem sou eu na fila do pão? – pretendo me arriscar.
 
Não prometo grandes emoções, romances épicos ou puro entretenimento. O sincericídio não é para jogar charme ou fazer cena, é só um modo de sugerir uma leitura que seja despretensiosa, desencanada. Quero dividir um pouco do meu trabalho e, a partir dele, de certa forma, ajudar a preparar o terreno para lutarmos contra o autoritarismo, que, provavelmente, por meio de um pacto negociado com satã ou com belzebu, de tempos em tempos, renasce das cinzas, brota do pó, com novas roupagens, máscaras e promessas, para impor o silêncio, a tortura e o rompimento dos vínculos comunitários. Sei que se conselho fosse bom não se dava, se vendia, contudo, acredito que para afugentarmos alguns fantasmas, além das simpatias e dos amuletos, devemos fortalecer nossas posições em relação ao que nunca deu certo, à propaganda enganosa, ao retrocesso, às alucinações.
 
Sem mais delongas então, depois de alguns rodopios e fluxos fajutos de consciência, comecemos. Meu nome é Highlander, sou brasileiro, nasci no ano de 1986 e... eu sou um..., é... caçador de patriotas!
 
Sobre o meu nome, um tanto irreverente, descobri, por volta dos 7 anos de idade, que se tratava de uma homenagem a um filme lançado um pouco antes do meu nascimento, “Highlander: o guerreiro imortal”. Não condeno meus pais pela escolha, cada um faz o que pode, não é mesmo!? Nessa história toda, tive muita sorte: primeiro, porque, quando assisti ao filme pela primeira vez, curti bastante, gostei da trama, dos personagens, de sua construção e, particularmente, do protagonista, que ficou conhecido pela alcunha que deu título à obra e que depois me foi concedida. Segundo, porque, benzadeus, sendo bem franco, a outra opção de nome que estava sendo cogitada, igualmente inspirada em um filme, era “u ó do borogodó”, fim de carreira, confesso que seria bem mais difícil de ser assimilada. Terceiro, porque, simbolicamente, o meu nome, ainda que soasse um pouquinho [ou muito] cafona, combinava com o que eu fazia, dava um ar de respeito à minha figura – “Highlander: o caçador de patriotas”.
 
II. Caçador de quê mesmo?
 
Caçador disto, caçador daquilo, caçador de recompensas, caçador de pedras preciosas, caçador de almas penadas, caçador de talentos, caçador de marajás, havia de tudo, a lista era interminável.
 
Desde há muito, caçadores de todos os tipos, de todas as designações estavam disponíveis no mercado. Não era incomum esbarrar com algum deles. No entanto, mesmo que a movimentação de caçadores fosse intensa, quando eu dizia que caçava patriotas, percebia que as pessoas ficavam sem reação. Acho que eram pegas de surpresa, não pela caça em si, mas, evidentemente, pelo que eu dizia caçar. Nessas ocasiões, não era muito raro eu ser chamado de “quarta-feira”.
 
Não era um sonho romântico que vinha sendo cultivado desde a infância. Aconteceu. Decidi me tornar um caçador de patriotas, porque, mesmo não sendo um biólogo de formação, fiquei fascinado com o surgimento, em nosso ecossistema, assim, do dia para a noite, dessa intrigante família de seres vivos. Ninguém sabia dizer se eram nativos ou se haviam sido contrabandeados para cá. A variedade era imensa. Não havia espaço para o tédio. O ânimo era renovado a cada ida ao campo. Uma descoberta me levava a outra, um motim me levava a outro, uma confusão promovida por um deles me levava a outra... era muita adrenalina.
 
Queria descobrir de onde brotava aquela energia, aquela disposição inquebrantável, para fazer o que faziam, falar o que falavam e postar o que postavam. Pois, se se diziam amar e defender, com tanta intensidade, a terra que habitavam, suas raízes, riquezas e potencialidades, como a entregavam de mão beijada ao caos e às trevas? Como fechavam os olhos para a perda de nossa soberania, nos mais diversos setores? Como permitiam que aventureiros, com o poder da caneta, mudassem, para pior, o que, minimamente, estava dando certo? Por um capricho, será? Ficava curioso para entender seus motivos, como conseguiam [supostamente] amar e, ao mesmo tempo, consentir com a destruição do chão que pisavam. Para mim, era um paradoxo existencial incompreensível, inconciliável. Ficava curioso, também, para entender como eles se deixavam guiar, completamente resignados e obedientes, pelas ordens de qualquer bufão, oportunisticamente, vestido de verde e amarelo, que aparecia falando frases feitas e provocando seus medos e frustrações. Adianto que, mesmo depois de muitos anos nessa lida, bem como depois de muitas terapias e reflexões conjuntas com outros amigos, não encontrei as respostas para esses enigmas. Continuam, todos eles, na ordem do impossível, do impensável.
 
Abro parênteses para fazer um comunicado: quando digo “caçador de...”, como já repeti algumas vezes até aqui, quero me referir ao fato de que procuro... hmmm, deixe-me ver, é..., de que busco encontrar algo, encontrar alguma coisa, jogar luzes a algo que estava escondido, no entanto, não faço isso munido de armas ou de quaisquer outros apetrechos letais. Corro léguas desses métodos. Abomino. A minha única ferramenta de trabalho era basicamente uma, a velha e boa paciência. Ah! Eu também andava com alguns antiácidos à tiracolo, pois a depender das criaturas que eu topava, o meu estômago dava algumas cambalhotas, revirava, parecia que tinha vida própria.
 
III. A caçada
 
O itinerário era o seguinte: investigava mais afundo os casos suspeitos que descolava [ou por indicação de algum conhecido, ou por especulação nas redes sociais], marcava uma entrevista [em um lugar público, com testemunhas por perto, preferencialmente], escutava suas queixas [que não eram poucas], fazia minhas anotações [aos trancos e barrancos], tirava algumas fotos [com autorização] e, já em casa, debruçava-me sobre os materiais, analisava os dados, refletia a respeito, traçava um perfil, batizava a minha descoberta com um nome mirabolante e, por fim, fazia a catalogação [por meio de verbetes, como em um dicionário].
 
Nem sempre eu conseguia completar o ciclo. Os grupos variavam muito. Tinha que me virar nos trinta para dar cabo da missão. Era preciso ter atenção, qualquer gesto em falso poderia colocar tudo a perder.
 
Às vezes, sem dar maiores explicações, fugiam no meio da entrevista, principalmente, quando chegávamos à pergunta de número 4 do questionário: “qual é a origem do seu sentimento patriótico? Desde sempre? Desde outras vidas? Ou desde que alguém começou a buzinar, constantemente, em seus ouvidos?”. Os entrevistados pareciam bugar, ficavam me olhando com cara de paisagem, não respondiam de jeito nenhum, pegavam suas trochas e zarpavam. Eu tinha uma hipótese para essa situação. Para mim, eles não admitiam qualquer faísca que colocasse em dúvida a pretensa ancestralidade cosmológica de seus sentimentos.
 
Às vezes, implicavam comigo por eu não estar usando roupas e/ou acessórios que fizessem alusão às cores nacional. Atrelavam o apreço e a paixão pela pátria à utilização ou não de trajes específicos. Para eles, ser ou não ser patriota, era uma questão de moda. E não havia meio termo, aqueles que não seguiam as suas regras, ficavam sob o julgo de sua afiada maledicência. Com a experiência, para evitar maiores constrangimentos e para não perder a viagem, passei a ir às entrevistas mais preparado, desde então, não tirei mais do carro o meu “kit patriota” de sobrevivência, um verdadeiro achado que revolucionou a dinâmica de minhas pesquisas.
 
Pra d'onde eu ia, carregava junto comigo uma bolsa amarela, modelo country, grande, com franjas verdes pregadas na parte da frente. Ali eu guardava todas as bugigangas necessárias para montar dois disfarces: o figurino do patriota torcedor, com camiseta da seleção brasileira, bermuda com vários bolsos, sapatênis e uma trombeta para anunciar, segundo reza a lenda, uma nova era; e o figurino do patriota espalhafatoso, com roupas cintilantes, pochete presa na cintura, cartazes com frases desconexas e cartelas de adesivos ufanistas. Chegava ao local antes da hora combinada, ficava sondando o entrevistado aparecer e, se fosse necessário, eu me disfarçava, fingia que era um deles por algumas horas.
 
E, por fim, às vezes, eu tinha que chamar as autoridades policiais, porque os patriotas já entrevistados encarnavam em mim de tal forma, que não tinha Cristo que os fizesse sair do meu pé. Ossos do ofício. Era o preço a se pagar. No mundo real, o risco zero não existe.
 
IV. Um desfecho
 
Como fazer um desfecho de um relato de nossas memórias? Fiquei me fazendo essa pergunta. Sobretudo quando esse relato diz respeito àquelas memórias que transbordam nossas fronteiras, que envolvem a vida e a segurança de tantas outras pessoas, de tantos outros espaços, enfim, que estão para muito além do eu, dos casos e acasos privados. Fazendo votos de que não se percam? Fazendo votos de que não sejam enterradas ou esquecidas? Fazendo votos de que fiquem nos trending topics do Twitter por anos e anos a fio? Sendo otimista e um tanto sonhador, acho que fazendo votos de que sejam, constantemente, problematizadas e contextualizadas, lançadas ao debate, à crítica.
 
Acredito que nossas memórias, escritas ou faladas, não devem ser colocadas à mostra, na vitrine, como uma forma, consciente e/ou inconsciente, vai saber, de nos eternizarmos nesta vida terrena, ainda que, de vez em quando, possamos ser tomados por esse ímpeto. Elas precisam reverberar, fluir, constituir e sustentar outras possibilidades plurais de ser e de existir no mundo, outras vias, sendas e veredas. Elas podem nos ajudar a estabelecer alguns pontos de partida e, principalmente, a levantar algumas barreiras de defesa contra o que não mais, dados os seus prejuízos e dissabores, merece prosperar, ao que não mais deve reaparecer. As memórias, as nossas, pessoais e coletivas, boas ou más, têm poder de transformação, não é à toa que são os primeiros alvos de grupos extremistas e de pilantras sedentos por poder. Deixo, portanto, não um legado ou um monumento, mas uma pista, um estímulo para presentes e futuros novos diálogos. Desfrutem do catálogo.
 
Highlander.
José Ricardo Menacho

por José Ricardo Menacho

Professor do Curso de Direito da UNEMAT/Cáceres
Mestre em Direito pela UFPR e Doutorando em Linguística pela UNEMAT
Escritor e Cronista
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6 comentários

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  • por Sheila Nzapine, em 10.09.2021 às 12:55

    Parabéns, Zé. Amei a descrição fashion dos patriotas. Nota-se ser um povo despido de elegância estética também. Ótima conclusão.

  • por Olga Castrillon, em 07.09.2021 às 21:12

    José Ricardo tem se mostrado um colunista plugado. De maneira lúcida atinge o miolo das questões sociais. Este texto demonstra sua capacidade de analise-critica. Parabéns!!!

  • por João Evangelista de Melo Neto, em 05.09.2021 às 07:42

    Muito interessante a análise feita pelo Professor José Ricardo Menacho, posto que o patriotismo tomou conta do país e o mergulha num futuro incerto e sombrio, dominado por patriotas que vendem por ninharia empresas públicas, mesmo que isso signifique a perda da soberania energética da nação. Sim, são muitas as variedades de patriotas neste país. Parabéns!

  • por Patrick, em 04.09.2021 às 22:30

    Parabéns escritor José Ricardo! Escritor e cantor de nossa terra. Este conto me fez conectar com algumas reflexões sobre o tempo atual. Sugiro a todos a leitura.

  • por Alvanir Pereira Caixeta Veiga, em 03.09.2021 às 18:43

    Bem descrito os espécimes, o ideal seria não encontrar tais criaturas, mas estão por toda parte, inclusive no seio de nossas famílias, e aí temos que separar joio e trigo, mas acredito que o desconforto é recíproco. Me lembra uma fábula, da Onça e o bode. Abraços Professor!

  • por Paulo Henrique, em 03.09.2021 às 13:08

    Leio todos excelentes artigos do nosso notável escritor Professor José Ricardo Menacho e seguramente este é um dos melhores! Parabéns, nobre Mestre!

 
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