Artigos / José Ricardo Menacho

11/08/2021 - 08:37

Chegou a hora de escolhermos um lado

Se não bastasse a pandemia – nossa ingrata e macabra “acompanhante” desde o início de 2020, cuja presença não pode ser desprezada em nenhuma de nossas reflexões contemporâneas, tendo em vista os contornos que ganhou no Brasil – há meses, vem se aprofundando, uma outra crise, a política. Crise que se revela, diga-se de passagem, não em razão de eventuais rachas e divergências entre os parlamentares no Congresso Nacional, ou dos burburinhos de quem será ou não será candidato nas eleições de 2022, mas em razão dos constantes ataques à democracia, ao direito ao voto e às instituições públicas, em especial, ao Poder Judiciário.
 
Ainda que a adesão ao absurdo não seja maciça e, felizmente, esteja minguando, perdendo adeptos e simpatizantes, atos antidemocráticos seguem pipocando ou sendo planejados pelo Brasil afora. Nessa mesma linha de ação, “sugestões” de rupturas institucionais seguem sendo lançadas ao vento, ou, sobretudo, seguem sendo reproduzidas e divulgadas no Twitter e nas demais redes sociais, ora pelo Presidente da República, que confunde o que é público com o que é privado, fazendo prevalecer seus gostos pessoais em detrimento da coletividade e do bem público; ora pelos membros de sua família, principalmente, seus filhos, que se veem como predestinados ao poder, segundo uma linha sucessória determinada pelo sangue, e, por esse motivo, aptos a opinar e a influenciar o pai em suas decisões; e ora pelo seu grupo de fiéis apoiadores, que, com seus malabarismos retóricos, tentam sustentar o insustentável.
 
O expediente funciona da seguinte forma, o Presidente da República, em meio ao caos instaurado [e/ou agravado] pelo seu governo  – para refrescar a memória: 14 milhões de desempregados, inflação elevada, preços nas alturas de alimentos, gás de cozinha, energia elétrica e combustíveis, desastrosa condução das políticas de saúde e de educação, baixíssimo investimento em ciência e tecnologia, negligência e corrupção na negociação e na compra de vacinas – vendo-se acuado, supostamente perseguido, “cercado”, quer por seus opositores políticos, quer, simplesmente, pelo exercício regular das competências constitucionais dos outros Poderes da República, bem como, tentando, a todo custo, desviar a atenção [do que já foi feito e descoberto] e, ao mesmo tempo, buscando continuar com seus arroubos autoritários e com a aprovação de pautas econômicas e de costumes, propostas e patrocinadas pelos grupos que ainda lhe dão sustentação, como resposta, distribui, à la carte, teorias conspiratórias das mais diversas às suas torcidas organizadas, a fim de que essas “agremiações”, que o veneram e o idolatram, trabalhem, gratuitamente, em sua defesa, comprando briga em seu nome, investindo recursos e energias em apoio às suas promessas de “uma nova terra prometida”, reverberando seu obscurantismo aos quatro cantos.
 
Fazendo um breve apanhado das “polêmicas” presidenciais dos últimos anos, com vistas a não deixar o fio da memória se embolar por aí: em 2019, no carnaval, tivemos o episódio conhecido como “Golden Shower”, com a postagem, na conta oficial da Presidência da República, no Twitter, de um vídeo pornográfico, gravado em um dia de folia, para, com um discurso moralista, criticar a festa. Em 2020, com a pandemia do novo coronavírus em andamento, explorando um outro campo, a medicina, mesmo não sendo médico e/ou cientista, decidiu indicar e propagandear, incansavelmente, por meio de lives, entrevistas e coletivas, a utilização de medicamentos, sem comprovação científica, para o tratamento dos pacientes infectados com o vírus. Ainda em 2020, enquanto, lamentavelmente, o número de mortes aumentava, não foram poucas as declarações contra as vacinas, contra o uso de máscaras e contra o distanciamento social, mais uma vez, sem apresentar um estudo sequer que embasasse a sua pirotecnia de impropérios – condutas que a CPI, instalada no Senado, vem mostrando os seus motivos. Em 2021, depois de ter imitado, mais de uma vez, com deboche e requintes de crueldade, uma pessoa com desconforto respiratório, um dos sintomas mais terríveis para quem é acometido com o agravamento da doença, agora – que rufem os tambores – chegou a vez da exaltação do voto impresso e da boataria negativa contra as urnas eletrônicas.
 
Aproveitando o embalo da listagem de “polêmicas” presidenciais, eu não poderia deixar de mencionar, também, o fantasma que desde o início do governo ronda as nossas vidas, assombrando a nossa paz de espírito e os nossos sonhos de um país mais justo, plural e democrático, a mentirosa e oportunista pseudo-tese, de que as Forças Armadas seriam, na República, a “reencarnação” do antigo Poder Moderador, poder atribuído ao Imperador pela Constituição Imperial de 1824 e que lhe permitia, quando e como quisesse, interferir nos outros Poderes constituídos. De acordo com uma interpretação sem qualquer base no ordenamento jurídico brasileiro vigente, “o líder e a sua trupe de acólitos”, fazendo contorcionismos circenses, querendo tirar leite de pedra e torturando as palavras para que digam somente o que desejam, tentam justificar sua verve ditatorial no art. 142, da Constituição Federal de 1988. Antes de prosseguirmos, não custa lembrar e insistir que o Poder Moderador foi extinto com o advento da República e que, ao longo deste sistema de governo, várias foram as Constituições promulgadas e, em nenhuma delas, havia a previsão de um exotismo dessa natureza, muito menos margem para uma interpretação nesse sentido. Poder Moderador, na República, que fique claro, é golpismo.
 
Voltando ao voto impresso [ou voltando ao passado, para ser sincero], indo no vácuo e se inspirando nas manobras trumpistas nos EUA, esquecendo-se que ele, Bolsonaro, e seus filhos, há muito, são eleitos pelas urnas eletrônicas, sem qualquer questionamento, e, por fim, com fortes indícios de não ser reeleito para o cargo em 2022, o Presidente da República tirou mais esse coelho da cartola. Suas últimas lives foram destinadas a defender o retorno das cédulas de papel, pois, assim, na sua leitura, fraudes seriam evitadas. À medida que as críticas aos seu novo posicionamento foram aparecendo, ele, de pronto, como de costume, foi metamorfoseando suas explicações. Da cédula de papel, do “voto impresso”, propriamente dito, passou a adotar outra expressão, o “voto auditável”. Sabendo que as urnas eletrônicas poderiam, como de fato acontece, ser auditadas, adotou outra terminologia, o “voto democrático”, que consistiria na emissão, pela urna eletrônica, de um comprovante impresso, uma espécie de extrato, ao cidadão, logo após a finalização do ato, operação já apreciada pelo Supremo Tribunal Federal e declarada inconstitucional, tendo em vista a sua ameaça ao sigilo e à liberdade do voto. Instado várias vezes a apresentar as provas das fraudes ocorridas ou em vias de ocorrer, dadas as suas constantes acusações, após se esquivar do assunto em diferentes oportunidades, confessou, recentemente, que não as tinha, mas que mesmo assim continuaria a defender a mudança.
 
Quanto à ausência de provas comprobatórias da ocorrência de fraudes nas urnas eletrônicas, bem como considerando o amontoado de tantas outras acusações infundadas disseminadas pelos grupos bolsonaristas, abro uma simplória nota de rodapé para compartilhar uma lição muito recorrente nos cursos de Direito e, igualmente, muito tratada na prática forense, a de que quem imputa a alguém o cometimento de um crime, sobretudo se o autor da acusação for um agente público, servidor ou representante político, em vez de tentar se promover com a situação, deve, imediatamente, buscar as autoridades competentes, relatar os fatos e apresentar as provas, no intuito de que o caso seja investigado, julgado e processado, sob pena do cometimento de um outro tipo penal, o crime de prevaricação (vide art. 319, do Código Penal).
 
A informatização do processo eleitoral, no Brasil, foi um avanço significativo, um fortalecimento de nosso regime de governo. Depois de um bom par de anos de denúncias comprovadas de coações a eleitores, de violações, sequestros e substituições de urnas, no curso das eleições, passamos a ser referência mundial em transparência, lisura e velocidade na apuração dos votos. As urnas eletrônicas – friso, auditáveis antes, durante e depois do pleito e atualizadas, periodicamente, contra invasões cibernéticas – tornaram-se um motivo de orgulho para todos nós, brasileiros e brasileiras, uma criação nacional, fruto de nossa inteligência e que, obviamente, pode ser, com o tempo, aprimorada, mas desde que para consolidar seus fins, os princípios e os valores em que se assenta, no caso, a preservação do voto direto, secreto, universal e periódico (Vide art. 60, §4°, da Constituição Federal), e não ao contrário.
 
Para além das bravatas, das cortinas de fumaça, das fake news, dos achismos e dos negacionismos, traços marcantes de nossos tempos, chegou a hora de escolhermos um lado, nossos destinos não podem estar à mercê de quem grita ou de quem quer gritar mais alto, de quem toma os espaços e as instituições públicas como partes de seu quintal privado, de quem acusa sem provas, atentando contra o Estado Democrático de Direito, de quem não se solidariza, com atos e não com notas de pesar e frases feitas, com a dor de tantas e tantas famílias afetadas, direta ou indiretamente, pela pandemia [...], rogo e faço votos de que escolhamos o melhor lado, o da democracia, cuja caminhada depende de nossos engajamentos e de nossas energias.
 
Prólogo:
 
Temos algo a comemorar. Ontem, na Câmara Federal, embora o quantitativo de votos a favor do retrocesso tenha me assustado, mais um sintoma, talvez, da horda de desinformação enraizada e do compromisso de alguns parlamentares com seus próprios “cálculos políticos”, a proposta de voto impresso foi derrubada e enterrada. Mas, enfim, nada como um dia depois do outro. Sigamos vigilantes. Amanhã, vai ser outro dia!
José Ricardo Menacho

por José Ricardo Menacho

Professor do Curso de Direito da UNEMAT/Cáceres
Mestre em Direito pela UFPR e Doutorando em Linguística pela UNEMAT
Escritor e Cronista
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9 comentários

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  • por Chico, em 19.08.2021 às 23:14

    O começo da dança. Agora inicia e finda coligacao...e no final...a briga sera pela fatia do fundão.

  • por João Evangelista de Melo Neto, em 19.08.2021 às 20:51

    Uma muito interessante e didática análise sobre algumas questões políticas que se destacam em nossa claudicante, porém resistente, democracia. O lado possível, cremos com afinco, é o da população, mesmo que esta peque, ocasionalmente, pela má escolha dos governantes que, cavilosos e perversos, falseiam a realidade para alcançar o poder e, uma vez nele montados, transformam-se de patriotas em vendilhões da pátria. Parabéns ao Professor José Ricardo Menacho por mais este artigo!

  • por Alfredo F. Borges Guigou, em 12.08.2021 às 07:34

    Prezado Professor, não tenho palavras para agradecer a luz de informação que o senhor costuma trazer para nós, leigos em tantos aspectos. Obrigado mais uma vez por nos ilustrar.

  • por Fatima, em 11.08.2021 às 18:00

    Parabéns pelo texto, claro, preciso, sem achismo, pautado em fatos. Sigamos na defesa da democracia.

  • por Eunice Elisia Silva Oliveira, em 11.08.2021 às 15:39

    Sensacional. A mais pura verdade. Precisamos sim na proxima eleição tomar uma postura para que esse ser despreparado não seja reeleito. Me senti muito representada por suas palavras, é um alento saber que não estou sozinha nesse pensamento.

  • por Paulo Henrique, em 11.08.2021 às 14:21

    Excelente! Está de parabéns o nobre Professor.

  • por Florence Monteiro, em 11.08.2021 às 10:41

    Perfeitamente. Estamos em plena campanha eleitoral, como se não houvessem milhares de mortos e uma interminável miséria e risco de fome. Lamentável o estado de coisas que temos aqui

  • por Profa Ana Di Renzo, em 11.08.2021 às 10:06

    Texto maravilhoso José Ricardo! Chega de Manipulacao de sentidos e de sofismas perversos! Nossa democracia embora jovem, resistirá! Bjs! Profa Ana Di Renzo

  • por ASCENCIO FRANCO DOS SANTOS, em 11.08.2021 às 09:53

    Parabéns mais texto necessário, preciso. É urgente tomar partido, posicionamento diante de abusos contra os direitos. E tem muita gente "boa", seguindo esses patetas, lembremos que fizeram carreira na Democracia, agora querem assassiná-la.

 
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