Você já sentiu o cheirinho de um café as 5h da manhã feito em um fogão à lenha?
Nasci em 1975, viviamos na fazenda região pantaneira fronteira com a cidade de San Matias- Bolívia. Com 6 ou 8 meses de idade eu vim morar na cidade, mas das nossas inesquecíveis férias na fazenda ficaram empreguinadas em minhas memórias muita coisa boa que hoje quero falar um pouco das heranças gastronômicas que levaremos culturalmente para sempre. Não sou especialista em gastronomia ou qualquer tipo de formação nessa área por isso o que trago aqui é apenas minha lembrança de criança dos cheiros e sabores que vi , senti e somente tempos depois, já homem feito e com a perda do meu pai, fui saber valorizar o que como criança eu não soube apreciar. Especificamente isso tudo me ocorreu com certa clareza quando andando pelo centro de Cáceres senti o cheiro de carne com banana verde que saia flutuando de um dos resistentes casarões que ainda servem como residência , um turbilhão de lembranças, pensamentos nostálgicos e saudosismo se derramou sobre mim, quase não.
consegui dar o passo seguinte porque me lembrou com clareza de detalhes as poucas vezes que meu pai me levava em visita à casa de seu irmão gêmeo meu inesquecível Tio Tutico" e sempre la em sua casa tinha essas comidas,(eu tinha então uns 6 anos de idade) a mistura dos temperos, o cheiro característico do caldo grosso em que se transforma , os temperos, pimenta malagueta e a tradicional vasilha de farinha de mandioca sempre à mesa para dar aquela mistura, eu realmente me senti um idiota por não ter, na época, apreciado como merecia todo esse capricho da nossa cultura gastronômica. Por um instante me dei conta de tantos momentos de sabores recentidos, como se um cheiro fosse a chave de uma porta esquecida de um armazenamento psicossomático ou seja, tudo aquilo que me construiu no que penso que sou hoje, mas isso pode ser uma outra conversa, afinal estamos sempre nos construindo inclusive essa ficha que caiu sobre a valorização que eu considerava que entendia sobre tudo que vivo nesta cidade, mas não, não somos somente o que pensamos ser, somos uma soma de muitos valores e atributos que somados ao longo de uma vida forma e transforma o conjunto, o conjunto de gente, povo , civilização.
Minha tia Dalva, ainda vive na Corixa, região específica da fronteira com a Bolívia onde então originou minha família, e posso garantir, não existe um café com bolinho-de-chuva mais saboroso que o dela, talvez pelo fato de ser parte de momentos mágicos de criança que vê tudo diferente? Não! Eu ainda vou até lá e afirmo, não tem melhor.
Dentre tantas lembranças ainda posso citar a maravilha do churrasco assado com espeto de pé de boi na lenha de angico, já sentiu esse cheirinho e esse sabor? Um ébano.
Nessa localidade, especificamente na Fazenda Jaraguá, propridade do meu pai herança deixada por meu historico avô Manoel Felix de Macedo , terra onde nasci (... onde nasci, onde não morei mas que conheci e não esquecerei...fiz um soneto sem métrica sobre isso) lembro-me com muita emoção até da carne com arroz às 5h da manhã , (famoso quebra torto da piaozada) feito pelo abilidozo parceiro de sempre , nosso inesquecível e finado Genezio, um pantaneiro preservado pela cultura mas de sabedoria sempre observadora, raíz.
Ele mesmo também preparava a carne com mandioca e embora tinhamos na fazenda uma geladeira a gás o bom mesmo era a carne conservada na lata de banha. Que sabor divino.
Quem não tomou leite no curral em um caneco esmaltado já adicionado canela e açúcar e o leite tirado na hora às 6h da manhã, leite morno na temperatura do animal não sabe o que é umas férias na fazenda.
Para o almoço Minha mãe fazia um nhoque de mandioca com carne picadinha que nunca mais vi
, minha tia Preta ( apelido da tia Ana Maria) sabia como ninguem refogar um giló temperado com pimenta do reino.
Nosso finado amigo Célio Silva, vendia os pãozinho com molho de carne e pimenta de cheiro que minha mãe preparava para os pedreiros que trabalhavam na construção da nova sede da prefeitura na Av. Getúlio Vargas.
Hoje ainda faço em casa paçoca de pilão de carne seca acompanhada de banana frita. Carne seca cuja origem era alimentar por longos dias a comitiva que tocava boiada pantanal adentro.
Nosso magestoso Rio Paraguai, quanta fartura, caldo de piranha, bagre ensopado, um fritinho de lobó inteiro, mugica de pintado e o pacú assado. A carne amarelada da giripoca cozida com mandioca.
A feijoada Mato grossensse de tutano de boi é de um sabor que meche com nossos mais profundos sentimentos, embora a ja tradional e nacional feijoada carioca também seja muito boa, a nossa feijoada nos remete à tropas de boiada e vida pantaneira.
Paozinho de forno à lenha da vovó Áurea mais manteiga caseira, era nosso lanche da tarde.
Uma rapadura de cana para adoçar toda essa comilança ( e ainda ajuda rebater a cachaça.)
Me lembro com muito carinho de tanta gente que tinha o dom e a magia da transformação dos alimentos e infelizmente não conseguirei citar todos aqui , e tantos pratos e especiarias que nossa riquíssima cultura nos proporciona, hoje observo os diversos fast food disponíveis no comércio de alimentos em Caceres, que saibamos conviver com toda cultura, que sejam todos bem vindos para nossa apreciação, muita coisa boa, todos com oferta em delivey inclusive, mas sinto falta também das nossas coisas, de quando alguém vem de outras cidades e região nos visitar e podemos oferecer o que só existe aqui, compartilhar esses sabores que aos poucos vão em degradē perdendo seu valor, meus filhos conhecem bem pouco, mas como disse texto acima , sempre estamos em transformação mas é preciso preservar com sabedoria para nunca nos esqueçamos de quem realmente somos. Nossa cultura e nossa gente, nós temos identidade.