Artigos / Jeison Almeida

14/07/2020 - 16:54

Insinceridade Regulamentar e a Proibição de Vendas de Bebidas Alcoólicas

Estamos no meio de uma pandemia. Fato inconteste. Desde a Gripe Espanhola (que não teve origem na Espanha, leia-se) a Humanidade não vivenciou um vírus com tamanha capacidade deletéria como é o COVID-19. Esse é, sem dúvidas, o maior desafio da nossa geração.

O enfrentamento ao vírus não é fácil. As informações produzidas por diversas universidades e entidades de pesquisa as vezes são conflitantes e/ou mal interpretadas, o que não é uma surpresa, haja vista que estamos “consertando um trem em movimento”. Haverá falhas em pesquisas, protocolos poderão ser revistos e cabe ao gestor público, diante desse cenário, buscar o meio menos oneroso e mais eficiente no combate ao Corona.

Ao contrário do dizem por aí, o Supremo Tribunal Federal no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n. 6341, decidiu que a competência para o enfrentamento do Corona é concorrente entre a União, Estados e Municípios (e o sempre esquecido Distrito Federal), é dizer, todos têm sua parcela de responsabilidade no combate ao vírus e a sua propagação. O Brasil é um país continental e o enfrentamento ao vírus não pode estar centralizando unicamente em Brasília, as medidas devem levar em consideração as particularidades regionais e locais e por isso, a necessidade de compartilhar a competência com os Estados e Municípios.

Não se pode negar, desse modo, ao gestor público municipal a competência, diante das particularidades locais, de determinar medidas de enfrentamento ao vírus: e chegamos ao busílis deste artigo.

O Prefeito do Município de Cáceres-MT, recentemente editou o Decreto n. 370 de 10/07/2020 que, além de outras medidas, em seu art. 7º determina a proibição da comercialização de bebidas alcoólicas, in verbis:

(...) a comercialização de bebidas alcoólicas na circunscrição do Município de Cáceres, do dia 13 ao dia 26 de julho de 2020, devendo haver a retirada de todas as bebidas alcoólicas das prateleiras e expositores, sendo proibida, inclusive, a comercialização via aplicativos de internet ou contato telefônico para entrega no sistema delivery.
Sob o meu ponto de vista, esse artigo 7º possui vício de inconstitucionalidade e de ilegalidade por, respectivamente:
i) violar os direitos fundamentais da liberdade de contratar, da liberdade profissional e do direito de propriedade, além do fundamento da livre iniciativa, sem a devida fundamentação constitucional, ou seja, a medida não passa pelo teste do princípio da proporcionalidade;
ii) violar a Lei Federal n. 13.979/2020 que não prevê essa medida dentre o rol taxativo do art. 3º para enfrentamento da pandemia e;
iii) se entender como exemplificativo o rol do art. 3º, por violar o seu §1º, que determina que “as medidas previstas (...) somente poderão ser determinadas com base em evidências científicas e em análises sobre as informações estratégicas em saúde (...)”.
 
Para além dos três motivos acima aduzidos, gostaria de focar em outro argumento, que possui leitmotiv mais político do que jurídico (pelo menos por enquanto).

Não é fato desconhecido que o Prefeito municipal enviou o Projeto de Lei n. 047 ao Poder Legislativo municipal, que tinha por objeto (conteúdo) a proibição de bebidas alcoólicas, bem como a imposição de multa para quem o fizesse. O referido projeto de lei, fora rejeitado pela Câmara Municipal, pois foi, segundo entrevistas dos vereadores, considerada ineficaz e inconstitucional.

No entanto, mesmo diante da rejeição da proibição pelo legislativo municipal, o Prefeito editou o decreto n. 370 e, ao contrário da deliberação parlamentar, impôs a referida proibição: e é aí que reside mais um problema.

Segundo o §1º, do art. 52, da Lei Orgânica Municipal, “a matéria constante do projeto de lei rejeitado somente poderá constituir objeto, na mesma sessão legislativa, mediante proposta da maioria absoluta dos Membros da Câmara Municipal de Cáceres”. Em outras palavras, a proibição da venda de bebidas alcoólicas (matéria constante no projeto de lei n. 047) só poderia ser levado a deliberação do legislativo se        metade do número total de vereadores assim propusesse. Esse número, diga-se, é para somente levar novamente a votação, sem expectativa de aprovação do projeto de lei.

Nesse sentido, o Prefeito municipal simplesmente ignorou a deliberação popular ao rejeitar o projeto de lei e sob sua única caneta, substituiu a vontade de mais da metade dos vereadores para expedir o decreto em questão.

A proibição da venda de bebidas alcoólicas por meio de decreto, depois de ter sido rejeitada pelo Poder Legislativo, afronta, não só o parlamento municipal como a soberania da vontade popular. Não podemos nos esquecer que vivemos majoritariamente sob uma democracia representativa e quem representa a vontade do povo cacerense são os vereadores.  A rejeição da proibição da venda de bebidas não é somente do parlamento, mas sim de toda a população cacerense que elegeu aqueles vereadores.

Nesse sentido, entendemos que o executivo municipal extrapola sua competência regulamentar ao dar vida a uma proibição já rechaçada pelo legislativo; viola a soberania popular ao ignorar a deliberação parlamentar, ou seja, dos representantes do povo e; viola a separação dos poderes por não respeitar a competência da Câmara Municipal.

Enfim, além dos vícios de inconstitucionalidade e ilegalidade acima apontados, o citado decreto ainda possui traços de autoritarismo por pleno desrespeito a vontade popular já manifestada em deliberação prevista na Lei Orgânica Municipal.
Jeison Almeida

por Jeison Almeida

Doutorando em Direito pela Universidade de Salamanca, Professor de Direito Constitucional da Universidade do Estado de Mato Grosso-UNEMAT e Advogado.
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