Artigos / José Ricardo Menacho

15/06/2020 - 13:56

Democracia, salvadores da pátria e afins

Não quero parecer repetitivo – até porque, direta ou indiretamente, tratei deste tema em textos mais recentes, adotando, em cada um deles, o mesmo posicionamento que compartilharei neste – mas, considerando a escalada autoritária que vem se delineando no contexto político brasileiro, é necessário, sempre que possível, para além da busca por informações confiáveis sobre os fatos, seguirmos reunindo esforços para renovar os nossos votos de apreço e de compromisso com a Democracia – reforçando vínculos, práticas e pensamentos – e, a partir dessa renovação de votos  [que, diga-se de passagem, não cessa em um único ato], contribuir para enriquecer o debate nacional em torno dos desafios do agora e do porvir, a fim de que a nossa caminhada, rumo às experiências em dignidades e em justiça social, não ocorra no vazio, como obra do acaso, dependendo, exclusivamente, da sorte.
 
A democracia não combina com o descaso, com a indiferença, com a falta de projetos, com a tentativa de controlar ou silenciar a pluralidade de ideias, com delírios ou com a negação do conhecimento. Tampouco, combina com a criação fantasiosa ou com a eleição de um suposto salvador – seja ele quem for, seja ele de onde vier – que, com carisma ou sem carisma, ora pregando para convertidos, ora nadando de braçada em alguma onda ou modismo que o beneficie, promete mundos e fundos, sem explicar como, quando e por quê.  
 
Aproveitando o embalo, gostaria ainda de trocar mais algumas figurinhas sobre salvadores da pátria e afins, muito em razão do que anda acontecendo na atualidade. Eleger alguém como representante político, sob a crença de que se trata de um salvador da pátria, isto é, que se trata de alguém infalível, que do alto de sua sabedoria, tudo sabe e tudo vê, é subestimar as nossas potencialidades enquanto cidadãos e, como consequência, enfraquecer ainda mais [porque já anda bastante capenga] a possibilidade de participarmos – seja como for, fiscalizando, discutindo, discordando, protestando, contribuindo – da tomada de decisões relevantes para a elaboração e a implementação de políticas públicas e sociais.
 
E digo mais, eleger um salvador da pátria ou torcer, com fervor, para que aquele que votamos se converta em um, acreditando, de fato, que alguém assim exista, é terceirizar os nossos destinos, concentrando-os [cegamente] nas mãos de uma única pessoa,  ou de um único grupo, que – a pretexto de fazer o bem ou a pretexto de fazer o melhor para o país – estará livre e desimpedido para: (1) dizer, sem qualquer filtro ou critério, o que quiser; (2) incitar o ódio e propagar a mentira e, assim, dividir a população a seu favor; (3) desacreditar [e, por vezes, sem exageros, demonizar] o que não contribui com suas pretensões personalistas de poder ou o que, minimamente, possibilita a formação ou o surgimento de algum tipo de resistência aos seus mandos e desmandos; (4) colocar os custos e os prejuízos de sua incompetência e inabilidade, na condução da coisa pública, ora na conta de uma perseguição que anda sofrendo por parte da imprensa ou de seus opositores, ora na conta daqueles que, segundo a sua fértil imaginação [que, infelizmente, acaba ganhando projeção e recrutando aguerridos seguidores], não são patriotas o suficiente, não amam a Nação como deveriam, pois, ao criticarem o governo, estão torcendo contra o país.
 
A respeito do que disse acima, no item 3, acrescento que os alvos quase sempre visados pelo líder salvador e pelo grupo que o apoia,  são: a Ciência, ao se privilegiar, em detrimento do conhecimento científico, o senso comum, o achismo, a boataria, o oportunismo e a falta de criticidade dos “pensadores de ocasião” e dos youtubers paraquedistas de plantão – “formados”, em sua maioria, ou por notícias de fontes duvidosas, compartilhadas nos grupos de WhatsApp, ou por montagens e memes publicados nas redes sociais – para respaldar uma medida governamental; bem como, em outro aspecto, tão grave quanto, ao se reduzir os investimentos nos setores de pesquisa e, assim, podar, não apenas o desenvolvimento de inovação tecnológica, mas, especialmente, o aparecimento de novas inteligências, novos cientistas; a História, ao se buscar, a qualquer preço, sem reflexão ou problematização, forjando provas ou fazendo acrobacias com os argumentos, revisar os acontecimentos históricos, criando, desse modo, a partir de uma manjada e duvidosa “salada teórica”, salpicada e misturada com fortes “temperos conspiratórios”, narrativas distorcidas, que não estimulam qualquer debate; a Cultura, ao se menosprezar, ou, ao se condenar, manifestações artísticas [do passado ou do presente] que não estejam alinhadas com a promoção das propostas e dos planos do governo, ou com seus estereótipos e imagens, bem como, ao se recusar, ou ao se dificultar, o financiamento à produção de obras, projetos e espetáculos artísticos comunitários, de amplo acesso e forte apelo popular, por entender que a cultura não consiste em um direito a ser garantido, mas sim algo supérfluo, sem importância; e a Política, ao se rejeitar o contraditório, a diferença, o diálogo, a convergência e a divergência, tomando o adversário político como inimigo e, portanto, sendo necessário eliminá-lo, desmoralizá-lo, fazer troça de sua vida e de sua reputação para ganhar o território.
 
A democracia [enquanto um regime de governo, o nosso regime de governo] vive, respira, sobrevive, floresce e dá frutos, de acordo com o modo como vamos construindo [ou tentando construir], não apenas para nós mesmos, mas para todos, espaços de liberdade e de oportunidades, em que vozes e existências são respeitadas. Desejar, então, uma ruptura democrática, em total descompasso com a Constituição Federal de 1988, tal como vem sendo defendido por grupos extremistas e, lamentavelmente, endossado por algumas figuras e lideranças públicas do alto escalão do Poder Executivo Federal, é convidar a escuridão, o obscurantismo e a truculência como companheiras. Clamar por intervenção militar, com vistas à implantação de uma “nova” ditadura [segundo um passado idealizado que nunca existiu e nunca existirá], como se fosse o melhor dos mundos, ou a saída para nossos problemas; é desprezar os ideais, as pautas e as conquistas civilizatórias já alcançadas no campo democrático; é confraternizar, em uma relação perigosa e arriscada, com seu próprio carrasco – pois a  violência de um Estado [ou de um governo] de exceção não possui critérios ou sentimentos, é imprevisível, volátil, acaba, de uma forma ou de outra, chegando a vida de todos, inclusive, para aqueles que tanto apoiaram e defenderam algo dessa natureza e que, a princípio, pensavam que nunca seriam atingidos.
 
É  curioso, e muito preocupante, como os ideólogos do obscurantismo e seus lacaios, saudosistas de um período de nossa história banhado em sangue, tortura e repressão, fazendo pirotecnias jurídicas, com explicações escabrosas e circenses, vêm qualificando as Forças Armadas [e nestes termos se manifestam] como sendo uma espécie de “Poder Moderador” da República, um Poder que seria responsável por tutelar os outros Poderes [o Executivo, o Legislativo e o Judiciário] a fim de zelar pela manutenção da paz e da harmonia entre eles – nada mais vintage, para não dizer reacionário [não é mesmo?], do que resgatar e ressignificar, como manda a conveniência rasteira, uma  antiga formatação do Estado brasileiro, concebida na Constituição do Império de 1824 [Vide artigos 98 e seguintes], que atribuía ao Imperador, que já era o chefe do Executivo, a possibilidade de intervir no desempenho das atividades dos outros Poderes constituídos, sem prestar contas a ninguém e sem poder ser responsabilizado por seu atos.  
 
Não há luz ou esperança em um regime ditatorial, seja qual for, seja como for. Há medo, dor, amargura e mentiras. Há uma normalidade fabricada, artificial, contada e vendida como natural; uma normalidade imposta como sendo o único – e tão somente o único – caminho capaz de garantir o progresso. Não há liberdade de expressão, de escolha, de imprensa, não há política para nos engajarmos de alguma maneira; esta, na verdade, conforme fiz menção, torna-se um dos primeiros alvos a ser combatido e censurado. Não há crítica, questionamento ou posicionamentos contrários. Há, dentre outros arranjos, um forte apelo moralista, como se o problema central de nossas angústias coletivas fosse esse, a degeneração moral do ser humano; há a relativização, quando não a extinção, dos direitos fundamentais, como se estes fossem obstáculos ao desenvolvimento; bem como, há a novelização da existência de um suposto inimigo a ser combatido – às vezes interno, às vezes externo, às vezes as duas coisas: o comunismo, a esquerda, o globalismo, o marxismo cultural..., para citar algumas das invencionices espalhadas por aí – no intuito de justificar o injustificável: a substituição do regime democrático por um regime autoritário.
 
Por fim, registro que lutar pela democracia, posicionar-se em seu favor, combater a desinformação a seu respeito, não significa, como alguns desavisados costumam propagandear, aplaudir erros, deslizes, crimes ou malfeitos cometidos em seu meio por quem quer que seja, mas acreditar que é com mais democracia, muito mais – e não com bravatas, desconhecimento e truculência – que conseguiremos aprimorar, amadurecer e fazer avançar a própria DEMOCRACIA.
José Ricardo Menacho

por José Ricardo Menacho

Professor do Curso de Direito da UNEMAT/Cáceres
Mestre em Direito pela UFPR e Doutorando em Linguística pela UNEMAT
Escritor e Cronista
+ artigos

Comentários

inserir comentário
9 comentários

AVISO: Os comentários são de responsabilidade de seus autores e não representam a opinião do Jornal Oeste. É vetada a inserção de comentários que violem a lei, a moral e os bons costumes ou violem direitos de terceiros. O site Jornal Oeste poderá retirar, sem prévia notificação, comentários postados que não respeitem os critérios impostos neste aviso ou que estejam fora do tema da matéria comentada.

  • por Solange, em 28.06.2020 às 14:50

    Parabéns professor José Ricardo, seus artigos sempre nos viabilizam um novo olhar, um outro ponto de vista, pautados na crítica fundamentada.

  • por Nilso Ribeiro Dos Santos, em 22.06.2020 às 16:57

    Sempre é um prazer a leitura dos seus textos, profundos no significar, direto no "calcanhar de Aquiles" , óbvio nas suas intenções. ..um polido na política já tão sem honras..um verdadeiro cavalheiro com as palavras. Parabéns Prof José Ricardo Menacho

  • por Iasmin, em 16.06.2020 às 18:31

    Ótimo texto e pertinente ao contexto político, em que determinando grupo dá indícios da substituição forçada que pretende fazer do regime democrático.

  • por Maria do Socorro Sousa Araujo, em 16.06.2020 às 11:14

    Parabéns pelo excelente texto Professor José Ricardo! Profundo na dimensão intelectual e, ao mesmo tempo, leve na compreensão. Perfeito na dimensão política e belo na dimensão estética.

  • por Tatyana Friedrich, em 16.06.2020 às 10:12

    Menacho sempre eloquente - e assertivo! Foi no ponto! Brasil precisa resgatar os valores democráticos!! Parabéns ao autor pelo texto e ao jornal Oeste por publicá-lo!

  • por Nancy Lopes Yung, em 15.06.2020 às 23:04

    Q bom ler algo que veicula lucidez, posicionamento crítico próprio...Estou cansada da dita "encaminhada". Parabéns, José Ricardo Menacho.

  • por Maria do Socorro Sousa Araujo, em 15.06.2020 às 21:07

    Parabéns Professor José Ricardo pelo texto! Profundo na dimensão intelectual e, ao mesmo tempo, leve na compreensão. Perfeito na dimensão política e belo na dimensão estética.

  • por Alfredo F. Borges Guigou, em 15.06.2020 às 16:04

    Mais uma vez um prazer intelectual imenso ler ao prezado Professor. Obrigado por nos iluminar toda vez.

  • por ASCENCIO FRANCO DOS SANTOS, em 15.06.2020 às 15:04

    Parabéns pela sobriedade da discussão, texto necessário e urgente, deve ser impulsionado. Chega em boa hora. Parabéns professor José Ricardo

 
Sitevip Internet