Artigos / José Ricardo Menacho

25/03/2019 - 09:01

Cidadão de BEM, eu?

Já que está na moda se proclamar alguma coisa, então, sem delongas, a partir deste exato momento, eu me proclamo um cidadão de BOA!

É, de boa mesmo! Em oposição – vocês já podem desconfiar – ao “título”, quase honorífico, muito usado no dia a dia, de cidadão de bem. De bem agora, só se for pra dizer: “de bem com a vida”, ou “de bem com algo que dê prazer”. Sei que a nova condição – a de cidadão de boa – não me lançará a um posto de destaque ou a um cargo simbólico. Mas esse também nunca foi o meu objetivo. Para mim, o lance é outro. Como contarei, trata-se muito mais de uma posição a ser assumida diante de nossa realidade do que um [auto] elogio.

De boa é menos opressor. É isso! Menos opressor. E se é menos opressor, é mais libertador, porque o que não oprime liberta, ou, pelo menos, ajuda a libertar um pouquinho.

E olha só, a minha autoproclamação não guarda relação alguma com aquele macete que aprendemos nas aulas de Português, lembra? De que: “mal com ‘l’ é bem” e “mau com ‘u’ é bom”. E, portanto, “bem” seria “mal” e “mal” seria “bem”, e desse jogo com as palavras eu tiraria algum “coelho da cartola” para justificar o que estou propondo. Se bem que, colocando a imaginação pra funcionar, até que daria pra bolar algo a respeito, mas, felizmente, esse trauma já foi superado, e agora não vem mais ao caso. Vamos lá! Foco! Sem viajar na maionese.

Passemos às explicações [e aos motivos] então.

Esse papo de ser chamado ou de chamar alguém de cidadão de bem, desde criança, sempre me soou um tanto falso, maquiado, soberbo, discriminatório. Soava pra mim, como algo carregado de preconceitos e como um modo arrogante de falar de si e dos outros. Quando eu ouvia alguém se referindo a si mesmo ou a outra pessoa dessa forma, eu ficava me perguntando: de bem de quê? Ou, de bem com o quê? Ou, de bem em relação a quê? Ao que está aí? Às agruras e aos problemas sociais? De bem com o próprio egoísmo?  De bem com as violações à dignidade coletiva que, por todos os lados, ocorrem? E o contrário então, como seria? O cidadão de mal? De mal com a vida?

Hoje, ainda incomodado – confesso que até mais do que antes, sobretudo quando me atenho a algumas situações de nosso cotidiano – sigo me perguntando sobre o tema.

E nessa vibe, de pergunta em pergunta, de pensamento em pensamento, me vem à mente o rapaz que faz da rua a sua casa e o seu sustento, afinal que tipo de cidadão ele seria? E a senhora – já de idade avançada – que não “trabalha”, que não consegue pagar suas contas, ou mesmo fazer contas, como a chamaríamos? E o senhor que, aos olhos do mercado, não produz, não gera riqueza alguma e, como último recurso para garantir a sua sobrevivência, sai de casa em casa pedindo comida, que tipo de cidadão ele seria? E o usuário de drogas que, fora de si, cegado pelo vício, fica esquecido na sarjeta ou em um beco pouco frequentado, ele também seria considerado um cidadão de bem? E a travesti – sim, a travesti – que, desempregada e estigmatizada pela sociedade, se prostitui nas madrugadas, também seria?

Acho que para nos referirmos à cidadania, falar algo a seu respeito – assim como em qualquer  outra discussão, com outras temáticas e recortes – devemos estar sensíveis ao fato de que tanto a palavra cidadania [e suas “personificações”, o cidadão, a cidadã] quanto as outras palavras que eventualmente empregamos para designá-la, qualificá-la ou explicá-la, produzem  significados a partir de processos histórico-ideológicos – e não a partir delas mesmas, como se elas transportassem consigo, de forma transparente e neutra, uma essência imutável, um princípio ativo pronto para o uso; tampouco a partir de nós mesmos, como se nós fôssemos a fonte autônoma, livre e consciente dos significados das palavras, sem qualquer “condicionamento” ou limitação.

E esse alerta para a sensibilidade quanto à constituição dos significados [das palavras] – longe de ser fruto de um suposto preciosismo linguístico de minha parte, é necessário, sob pena de sairmos por aí espalhando abobrinhas e senso comum, e atualizando noções já significadas em outros tempos, que negam as fragilidades e as potencialidades do que precisa ser debatido e problematizado, alimentando com isso interpretações simplórias e superficiais da realidade – o que é lamentável.

Reparem que é de cidadania que estamos falando, assunto que deveria ser central em nossas reflexões e reivindicações, não é pouca coisa não! Logo, ao invés de reduzirmos os seus limites, com generalizações e banalizações baratas, que passam ao largo da complexidade do que ocorre em nosso meio, devemos [é] esgarçá-los.

Retomando. Prefiro é o cidadão de boa mesmo, porque estar de boa, é uma condição de plenitude, de satisfação, é, hmmm, uma filosofia de vida. Já olhou para a cara de uma criança ou de um adolescente quando eles dizem: “tô de boa”! Ou, “fica de boa”! Não tem preço. É leve. É instigante.

Agora, de bem, sei lá, pelo que ando vendo e ouvindo, não é um destino que muito me agrada, parece um destino meio controlado, vigiado, dividido. Imagina só a dor de cabeça, a aflição, as angústias que um sujeito deve passar para tentar seguir a cartilha de um provável cidadão de bem. Porque sim, suspeito que exista uma cartilha. Uma cartilha com vários mandamentos e indicações; o curioso que aqueles que a defendem, aqueles que mais batem no peito e levantam essa bandeira, não a seguem, alguns até se esforçam, no entanto, uma hora ou outra, tropeçam. Tropeçam em suas próprias contradições.

Fico pensando como aderir a algo que rechaça a diversidade? O diferente? Como conseguir aderir a algo que determina um grupo, segundo seus comportamentos e pensamentos, como sendo o eleito? Como aderir a algo que nomeia como anormal, desajustado ou doidivanas aqueles que não aceitam ou se opõem às suas determinações? Por fim, como aderir a algo que reforça o determinismo, a predestinação na sociedade?

Cidadania não se classifica de forma autoritária, muito menos se confunde com moralismos dos mais deturpados e hipócritas, se experimenta, se saboreia. A cidadania se constrói, não porque se cumpre estritamente o que nos mandam fazer; não porque, sem questionar, obedecemos a dogmas pulverizados aos quatros ventos; mas à medida que os espaços públicos, as oportunidades e as chances se ampliam, se articulam, se multiplicam; à medida que a fome se arrefece, e que uma educação emancipatória se esparrama em todas as direções. Cidadania se constrói tendo como sustentação a solidariedade.

Com ou sem humor, é por essas e por outras, que me proclamei [e continuarei me proclamando] um cidadão de boa, pois é só estando de boa consigo mesmo e com o mundo que conseguimos mobilizar o que precisa ser mobilizado e que paramos de criar desculpas para nos diferenciar das outras pessoas, como se os desafios da coletividade também não fossem de nossa responsabilidade.
José Ricardo Menacho

por José Ricardo Menacho

Professor do Curso de Direito da UNEMAT/Cáceres
Mestre em Direito pela UFPR e Doutorando em Linguística pela UNEMAT
Escritor e Cronista
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4 comentários

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  • por Paulo, em 27.03.2019 às 08:48

    Excelente abordagem, parabéns ao mestre José Ricardo.

  • por Adriane Santos dos Anjos, em 25.03.2019 às 12:47

    Realmente fantástico, e partilho desse mesmo sentimento e que você meu caro amigo, deu exatamente nome aos bois. Nada como estar de boa e ter o dom de olhar através das coisas e pessoas e não simplesmente olhar para elas. Não é tarefa fácil, mas deve ser nosso exercício diário!! Eu não canso de te elogiar e de contemplar suas obras tão primas, bravo!!!! Você é um espetáculo meu querido, um beijo e um abraço bem apertado!!

  • por Maria Auxiliadora de Almeida, em 25.03.2019 às 12:41

    Achei bem interessante a discussão de cidadão de bem relacionado a norma, uma vez que a normalização também hierarquiza as relações sociais.

  • por Douglas de Carvalho, em 25.03.2019 às 11:22

    Parabéns pelo texto José Ricardo, que sejamos todos cidadãos de boa! A verdade que o cidadão de bem está cheio de ódio por dentro, rezando para que seu telhado de vidro resista a tormenta dos novos tempos, da aceitação da diversidade e da emancipação de grupos que foram excluídos e subjugados ao longo de todos esses anos. Não querem aceitar a realidade social como posta, querem armas, não querem livros querem redução da maioridade penal, não lutam por educação de qualidade para os mais jovens querem o fim das ações afirmativas, não querem lutar por melhores oportunidades para negros e negras que vivem em situação de miséria e vulnerabilidade social enaltecem a meritocracia, esquecem que a meritocracia neste país é para apenas uma parcela da população, os mais favorecidos defendem o conservadorismo e o fundamentalismo religioso, não respeitam a democracia, a liberdade de expressão e o estado laico, subjugam o outro que não é igual à ele mesmo. Não será! Esse outro é mais empático e altruísta, carrega na pele as marcas da luta por dias melhores tanto para si como para o outro, consegue olhar nos olhos, ter de igual para igual e fazer a diferença. Cidadão de bem é o espelho do mais veemente retrocesso que estamos vivendo atualmente.

 
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